domingo, 22 de setembro de 2013

Sobre o conceito da face no filho de Deus por Edelcio Mostaço

 
Castellucci e o juízo de Deus
A cena é uma porrada. Desferida bem no centro do rosto, naquele ponto entre os olhos que os místicos costumam julgar como do terceiro olho. O espectador fica aturdido, sem respiração, ao final dos sessenta minutos de Sobre o conceito da face no filho de Deus, uma das emblemáticas encenações de Romeo Castellucci para a Socìetas Raffaello Sanzio (2010) apresentada como atração maior da vigésima edição do Porto Alegre em Cena.
Como outras criações da companhia, também essa coloca em cena não um mero jogo teatral, mas um teorema ontológico complexo, cuja substância conceitual deve ser perquirida pelo espectador. São apenas três cenas: na primeira, a mais longa, um filho dedicado cuida de um pai decrépito que se desfaz em fezes; na segunda, crianças jogam granadas contra a figura de Cristo; e a derradeira, quando essa mesma figura se auto dissolve.
As cenas não possuem advérbios ou conjunções cênicas interligando-as ou subordinando-as, de modo que subsistem isoladas. O que, por si só, resume o aspecto enigmático do conceito possível, descortinando possibilidades interpretativas as mais instigantes. A primeira cena (pode-se dizer quase a totalidade do espetáculo, pois ocupa 55 minutos) oferece o fino ambiente de um apartamento de um executivo bem sucedido, imaculadamente branco, todo branco. Atrás, em desmesurado tamanho, um recorte da face do Jesus Cristo pintado por Antonello da Messina (c.1430-c.1479). O pai é nele introduzido através de dois maquinistas que o amparam desde as coxias e o sentam no sofá branco onde assiste TV com dois enormes fones de ouvidos também brancos. O filho, ao entrar, logo começa o diálogo em torno da doença que o acomete, dos remédios que tem de tomar, dos cuidados que deve observar depois que ele sair. Ele traja impecável terno e gravata e confere recados no celular.
O velho, contudo, reclama que fez cocô. O rapaz, com a benemérita alma daqueles que nasceram para reverenciar os mais velhos, tira o paletó e inicia um longo ritual de troca de fraldas do vetusto senhor. Com variações de intensidade e com crescente angústia entre ambos, esse mesmo ritual de purificação ocorre por mais três vezes, a cada um deles aumentando a diarreia do pai, até o palco ficar transformado, literalmente, numa enorme poça de matéria fecal. A interpretação dos atores é acentuadamente naturalista, bem como os recursos cênicos nela empregados, o que leva a plateia a experimentar dois sentimentos contrários: o asco e o maravilhamento.
O primeiro resulta dos momentos iniciais, quando se constata o que a peça vai abordar; o segundo advém daquele sentido freudiano elementar de fascínio pelos excrementos e, do ponto de vista cênico, do jogo de teatralidade que Gianni Plazzi (o pai) e Sergio Scartella (o filho) imprimem às criaturas que lhe foram destinadas por Romeo Castellucci, autor e encenador desse teorema.
Dada a lentidão da cena em seu ritmo natural, a plateia tem tempo suficiente para procurar em seus arquivos mentais outras atribuladas relações pai/filho, tais como a Carta ao pai, de Kafka, ou os soturnos episódios de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski. É possível, é claro, regredir à Bíblia e dela selecionar passagens escolhidas; ou ainda evocar o pantagruélico Gargântua, assim como outras figuras que a imaginação de cada qual mobilizar. A cena é construída com tal precisão que não deixa de conter alusões, claros, entradas possíveis ao devaneio dos espectadores.
Para a teoria do teatro, não há como deixar de evocar Artaud e seu mais que profético Para acabar com o juízo de Deus, uma vez que seus princípios centrais informam a poética de Castellucci em várias acepções. “A palavra teatro soa (...) para mim (...) como uma palavra de herança bizantina e inflexível: ‘iconoclastia’”, escreveu ele em “Os peregrinos da matéria”, conjunto de textos onde expôs suas ideias sobre poética cênica (CASTELLUCCI, Romeo e Cláudia. Les pèlerins de la matière. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2001, p. 99). Iconoclastia esta que vai se aprofundando ao final de sua realização. Na segunda cena um garoto entra em cena com uma bola de basquete e uma mochila. Deposita a bola ao lado, abre a mochila e dela vai retirando granadas para jogar contra a imagem de Cristo. É seguido por outros colegas, até o palco restar forrado daqueles petardos. Concluída a agressão, eles abandonam o palco com a mesma reverencial atitude com que entraram. É então que a cena final descortina todo um refinado procedimento cênico:  a figura de Cristo começa a escorrer tinta, borra-se toda, agita-se, contorce-se até restar literalmente despedaçada e, por trás, revelar uma frase em inglês, profusamente iluminada: you are my shepherd (você é o meu pastor).  Há, contudo, um derridiano not após o verbo, sem iluminação, o que altera e introduz a diferença ao sentido bíblico ali depositado.       
Dialética ou regime?
Como equacionar as três cenas? De um ponto de vista mais tradicional, poderíamos ser levados a tentar a dialética: tese, antítese e síntese completando seu ciclo revolucionário e proponente de uma nova espiral para o real. Se a opção, entrementes, recair sobre Lacan, os três registros da psique: o real, o simbólico e o imaginário enquanto irredutível equação da subjetividade. E se tentarmos outras lógicas, talvez seja possível evocar a desconstrução, onde teríamos uma parábola, um símbolo e uma epifania, sucessão de regimes narrativos sugeridos pela arquitetura de cada cena.
Em suas declarações, Castellucci é vago, impreciso, deixa ao espectador fazer seu jogo mental.  Razão pela qual a teatralidade me parece um percurso menos acidentado e mais condizente com sua natureza. A primeira cena contrapõe o naturalismo das interpretações ao simbolismo da cenografia, de onde resulta um choque semântico interessante entre fundo e forma: ainda que com refinados aparatos técnicos de apoio (fraldas, cadeira de rodas, remédios etc), o homem não conseguiu ainda resolver ou curar um estágio elementar de sua fisiologia anômala: o controle intestinal que o acomete na decrepitude. Isso impõe ao filho um caritativo devotamento, uma irrevogável missão ética da qual não consegue se safar. Tal interpretação encontra apoio no gesto final do rapaz, ao aproximar-se da imagem de Cristo e beijar-lhe a boca. É não apenas a reverência diante do divino, como seu reconhecimento e aquiescência. Razão pela qual, a cena adquire todos os contornos da parábola.
A segunda cena efetua um esboço quase épico: o garoto entra, deposita sua bola, com gestos meticulosos e quase ensaiados retira uma a uma as granadas e as arremete contra a imagem ao fundo. Secundado pelos demais que vão adentrando, as ações se repetem com inquebrantável regularidade, materializando um símbolo: a atual onda de manifestantes e black blocs que se alastra pelo mundo, a insatisfação contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra a ordem instituída que Cristo imanta como ninguém. É a iconoclastia em seu ponto ótimo, porém burro e fundamentalista.
A terceira é um prodígio barroco: três maquinistas são necessários para fazer a enorme figura estampada em plástico branco suar tinta e borrar-se, contorcer-se e, pouco a pouco, se desfazer em pedaços, agudo emprego de recursos próprios ao teatro de máquinas, seguido da inconfundível expressividade digna de grandes musicais e shows do burlesco: a frase profusamente iluminada por incontáveis lâmpadas faiscantes, uma epifania cênica das mais potentes.  Todos esses recursos não são vagos nem imprecisos. Foram buscados com meticulosa precisão pelo encenador e evidenciam signos historicamente legíveis na história do teatro ocidental, a enciclopédia disponível que a cena contemporânea utiliza.
É nesse sentido que as cenas obedecem a um regime narrativo, encaixam-se como peças de um puzzle que, pouco a pouco, vai revelando sua face – a da disseminação -, os múltiplos atributos e qualidades da face divina. Convém não esquecer que fazer face possui diversas acepções: estar voltado para; ficar em oposição a; não fugir frente ao perigo; enfrentar; dar a solução ou o remédio a algo; arcar com os custos de;  o que torna o conceito de Castellucci multívoco e filosoficamente matizado, longe das simplificações.
É o que me é possível concluir três dias após a ressaca provocada pelo espetáculo, tal sua densidade e impacto sobre o terceiro olho.  

* Edelcio Mostaço é professor de Estética Teatral na Universidade do Estado de Santa Catarina

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