Sobre representações e a enorme solidão de ser humano
O Ator entra em cena
com a ajuda de dois assistentes. Seu corpo vibra uma fragilidade que
acompanhará o público até o ultimo segundo do espetáculo. Ao fundo e mirando o
público a enorme reprodução da pintura do italiano Antonello de Messina, que
durante o século XV ficou conhecido por difundir a técnica da pintura a óleo
por toda a Itália. A imagem nos revela um dos mais recorrentes temas da arte
até o século XIX: A face do filho de Deus. O Cristo de Messina é representação.
Ele se faz verdade enquanto arte. Deus e sua existência plasmada carne no
humano corpo do filho também pode ser pensado como uma representação repousada
sobre um gigantesco grupo de imagens, textos, escritos, arquiteturas que lhe
deram um valor de verdade. Da imagem que arrebatou os olhos do diretor italiano
Romeo Castelucci, que a encontrou em um livro de arte, até a experiência que
vivenciamos na noite de sexta no Theatro São Pedro, durante a segunda
apresentação do espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus ecoam sentidos múltiplos que seguem vivos
e ressoando na mente de todos que ali estiveram. O trabalho parece cochichar
constantemente a nós o fato de que por mais que tenhamos inventado um Deus,
somos inegavelmente humanos. Há uma solidão inerente a toda desenho de vida do
homem e essa solidão é tão aterradora que, por vezes, faz criar amores,
paixões, deuses.
Não é fácil assistir ao
trabalho porque não é fácil estar diante de representações de etapas da vida
que se restringem ao privado, ao que é vivido entre paredes e não ganha
visibilidade num mundo repleto de imagens felizes e afirmativas. As
representações da velhice e suas dimensões ganharam o status de melhor idade.
Atravessam nosso estar no mundo como promessas de otimismo. São representações,
assim como o cristo de Messina.
Nosso primeiros Deuses
eram mais humanos e nos eram mais próximos em seus desvãos. Foi a igreja romana
que criou a cisão entre a alma e o corpo. Transformando a primeira em uma interioridade
a ser trabalhada, e relegando ao segundo o lugar de espaço da expiação, a
prisão que impedia a semelhança perfeita com o criador. As representações do
catolicismo viraram práticas de vida no ocidente e fizeram do primeiro e talvez
mais humano dos territórios - o corpo em todos os seus tempos, prazeres,
pulsões - a prisão que nos impedia a divindade. Talvez por isso aquele corpo tão
humano do velho pai e a dedicação, o cuidado e as contradições do filho são tão
grandes em sentidos: diante da face do filho de Deus, o único auxilio que vem
em direção ao velho pai é humano.
A plateia durante o espetáculo
se comporta como em um ritual. Há uma comunhão entre as pessoas que ligadas assistem
a dor da finitude e sua imensa solidão feitas com a delicadeza que o espetáculo
por fim emana. Quando o rosto do ator se cobre de excrementos é possível ouvir
por entre os homens e mulheres um tenso e discreto riso que soa como um
oxigênio, uma saída, um pequeno e breve atenuante para a dureza do que ali se
mostra.
Quando o filho se
dirige até a face representada de Cristo no fundo do palco, toda o silêncio dos
pedidos de auxílio não atendidos em horas de desespero ganha corpo diante do
público. No escuro que se segue ainda resplandece muda e cada vez mais imantada
de indagações a enorme face do filho abandonado pelo pai, jogado às dores e
crucificações e tão humanamente representado. Humano em seus olhos, humano na
barba, nos cabelos, humano na incapacidade de roubar aqueles dois indivíduos
das dores a que estão submetidos. Humano como o homem artista que o inventou.
Logo após a emblemática
cena das crianças jogando granadas na face representada do Cristo, surge diante
do público aquele que pra mim é um dos momentos mais eloquentes do
trabalho - entre tantos - falo de alguns breves segundo onde diante do público é
formado um triângulo entre o menino, a face do filho de Deus e o velho. Três
idades do homem. Toda a potência da infância, toda a possibilidade de ser e
criar um Deus e toda a fragilidade da vida que inventamos no nosso território
primeiro e último, o corpo.
Ao final do espetáculo,
quando a imagem/representação/Cristo é destruída diante dos nossos olhos, é como
se a afirmação da representação de um Deus, pastor e salvador se apresentasse
em toda a sua materialidade. É como se o
diretor nos afirmasse que tudo isso a que chamamos Deus é humano, é invenção, é
material e por isso só também é finito. Humano, invenção, materialidade: por
uma dessas manobras que a escrita permite e com a justaposição destas três
palavras poderíamos muito bem estarmos nos referindo a toda a arte produzida.
Ou melhor, a toda a arte como essa, que ali naquele encontro com toda a
fragilidade do existir mostra que a mesma necessidade humana de suplantar o
monstro da sua inerente solidão, talvez seja também o motor que anima criações
como esse impactante e inesquecível espetáculo da Socíetas Rafaello Sanzio.
* Igor Simões é ator e professor de
História, Teoria e Crítica da Arte na graduação em Artes Visuais- Licenciatura da Uergs
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