segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O filho eterno por Júlio Conte


Uma porrada. A emoção é uma porrada. No fígado, no baço, no queixo. Um direto, um cruzado e uma sequência de um-dois incessante. Entrando e saindo do in-fighting. O corpo a corpo da emoção é a arma mais poderosa que o homem possui. A língua, a linguagem e as palavras foram inventadas para dar conta da emoção, e quanto mais primitiva, mais intensa, mais violenta, mais sem perdão. Cruel. Daí o silêncio. Ninguém fala, quem vive o dano, pai e filho, não fala, nem fala o médico que insiste em ser frio e usar palavras técnicas e vazias, nem o psicanalista aterrorizado e suspenso frente ao trágico. Resta, como última esperança, o poeta, para encontrar a poesia perdida da vida. Mas quando o escritor é o pai, ele também para sobre o abismo, ante o buraco infinito que se fica quando se tem um filho com problemas. Pois Cristovão Tezza deu uma passo à frente em direção a tal abismo e escreveu um romance sobre seu filho. Palavras para romper este silêncio, palavras para dar forma àquela emoção sem fim. Aquele desespero sem fim. Palavras contra a genética. Palavras para lidar com aquela necrose irreversível no coração. Segue-se vivendo, mas nunca mais o mesmo. Cristóvão nos conta que nasceu Felipe, como poderia ser Pedro, Fabinho ou Mariana. Mas no caso dele foi Felipe, nascido com Trissomia do 21. No sítio do cromossomo 21, onde deveriam estar um par de alelos, um do pai, outro da mãe, se gruda um terceiro e altera toda a história guardada no baú genético da sobrevivência. Uma doença que já fôra chamada de Mongolismo. Sobre este evento abissal na vida de um homem (ou uma mulher) se produziu a narrativa do romance que virou peça, que assisti ontem no Teatro do Sesc, dentro do 19º Porto Alegre Em Cena.
A crueza da encenação, uma cadeira, um ator, luz e palavras, leva o espectador à sensação de que estamos desamparados. Entramos num ringue sem conhecer o oponente. O palco quase vazio de recursos que as novas mídias nos oferecem, restando apenas o mais antigo e o mais frágil (e importante) de todos, o ator. O mínimo é a forma de dar ideia da precariedade com a qual se está lidando. A fragilidade de uma vida especial. Vemos um pai que oscila entre o terror, a curiosidade, a dor narcísica e o laço pai-filho. Tudo muito precário. Sempre é quando entramos no universo pai/filho, mas neste caso mais ainda. Charles Fricks é estupendo na interpretação. Coloca-se dentro e fora de si mesmo, entrando e saindo de uma luta interna de um personagem fissurado no tempo e na alma. Narrador e narrado. Observa o filho, sofre, se afasta, observa-se observando, aterrorizado. A direção de Daniel Herz, os dois da Cia. Atores de Laura é precisa, pois cria alternativas, é agridoce, revoltada e amorosa, cheia de contrários dialogando. Transitando entre estados emocionais de forma bela e tocante. E a grande virtude, o mais importante, é que sempre que a encenação se aproximava do abismo da redundância ou do limite da auto-piedade ou da pieguice, ele sai, salta fora, muda o vértice, o narrador se reinventa, alternando assim as estratégias e os golpes. Como bom boxeador encontra as brechas na emoção da plateia, entre o doce e o amargo, vão entrando. Assim, quando o nocaute final chega, estamos na lona, em lágrimas. Entregues de volta à emoção inicial da qual tentávamos nos evadir. Mas agora sem o terror, amortecidos, tecidos pelo amor. Aceitando a peça que o destino nos pregou. Prega. Até o último round.
 
*Júlio Conte é diretor teatral, dramaturgo e psicanalista

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