domingo, 9 de setembro de 2012

Mãe Coragem e seus filhos por Rodrigo Monteiro

O simples gesto de continuar
             Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht (1898-1956), é uma das obras primas da dramaturgia universal e o espetáculo da companhia alemã Berliner Ensemble faz jus ao texto. Protagonizado por Carmen-Maja Antoni, a produção dirigida por Claus Peymann resulta em um delicado trabalho de dramaturgia cênica que rejuvenesce a obra porque expõe a humanidade de seus autores em doses nada modestas. Três horas passam voando no teatro quando há jogo, quando o ritmo é bom, quando a história é bem contada, quando o que se está vendo é interessante. Eis aí as chaves para entender os aplausos efusivos que finalizam as apresentações desde 2005, em Berlin, quando a peça estreou, e pelo mundo afora por onde passou, chegando agora ao 19o Porto Alegre em Cena.
            O palco, um grande tablado circular, está inclinado, caindo em direção à plateia. Um estrondo agudo e seco anuncia o aparecimento repentino de um pequeno galho florido no centro. É o início da história, que se passa na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na Alemanha. Dois soldados abordam a carroça de mercadorias de Anna Fierling, uma vendedora ambulante, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Os dois filhos puxam a carroça quando o diálogo começa. Dinheiro, comércio, guerra, interesses pessoais: Anna, a Mãe Coragem, tira o sustento de sua família da guerra que agora levará seus filhos. A amiga guerra também será sua inimiga. As relações, sempre circulares, exibem sua profundidade quando vistas a partir de sua dubiedade: tudo o que é bom é também ruim.
            Não é exagero dizer que Carmen-Maja Antoni está esplêndida no papel título. Ao mesmo tempo terrível ao regatear a vida de um filho, ela é doce ao dizer não ao calor e ao conforto de uma estalagem pela companhia da filha muda. Dito na complexidade de suas consoantes, o alemão se apresenta fortemente no contexto geral de cada palavra junto com todas as delicadezas no dizer de cada sílaba. Ler as legendas, em muitos momentos, é desperdiçar os ouvidos dos diálogos jogados com tanto merecimento. Anna Graenzer, que interpreta a filha, representa bem o papel contraponto de Coragem. A sensibilidade é muda, dependente, com cicatrizes. Só quem a tem, a entende. Martin Seifert, que interpreta o capelão, enche de nuances as suas aparições, exibindo com gradativa significação a transformação do seu caráter. Quanto mais pecador ele se torna, mais santo ele fica, movimentos que poucos dramaturgos conseguiram expressar na história do teatro. Em suma, fundado em 1949, o Berliner Ensemble, pela primeira vez no Brasil, traz um elenco de protagonistas e de coadjuvantes afinados, com interpretações potentes e cujos destaques vão desde simples tons até Antoni na grandiosidade de sua anti-heroína.
            Claus Peymann, célebre desde Kasper, de Peter Handke (1968), confere excelente ritmo à narrativa. Dos giros do olhar à movimentação da carroça, nenhuma marca acontece sem orquestração. O desafino na interpretação das canções funcionam como meias rasgadas, freios de mãos emperrados e maquiagem carregada: nada é despretensioso. O famoso distanciamento brechtiano, uma reflexão para poucos, pode ser visto superficialmente no tom farsesco: cada elemento está por algo além dele, um algo que certamente significa mais do que apenas uma parte da história.
            Com blackouts longos, a iluminação (não creditada) é positivamente fria, dura, específica. Em tons escuros, o figurino de Maria-Elena Amos privilegia os camponeses e faz destoar os personagens militares estranhamente. A direção musical de Rainer Böhm faz ver a importância das canções como recurso diegético, sem felizmente caracterizar a peça como um musical. O cenário de Frank Hänig, que inclui a carroça da versão original, é simples, apontando para o essencial: o jogo retórico do discurso dramático.
            Anna Coragem termina empurrando a própria carroça como Zé do Burro carrega a sua cruz, pagando sua promessa. A humanidade que destaca o homem e lhe a dá a vida, também é a sua morte. Liberdade e condenação andam lado a lado na sublime decisão de continuar.
*Rodrigo Monteiro escreve no blog Crítica Teatral (www.teatrorj.blogspot.com.br)

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