sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Júlia por Jeferson Cabral

 A interatividade artística
            A curiosidade por assistir a uma adaptação de um clássico da dramaturgia mundial foi o que me instigou a presentificar a proposta de encenação da peça Júlia, realizada pela diretora Christiane Jatahy. Nesse espetáculo somos convidados a entrar em uma atmosfera artificial híbrida que reconta a história de Senhorita Júlia escrita por August Strindberg no ano de 1888.  
            No obra de Strindberg, nos é apresentada a discussão entre dois mundos distintos, social e culturalmente. A relação de poder de uma classe perante outra é confrontada através da relação conturbada entre uma menina da aristocracia e um serviçal. O nó da história inicia-se quando essa menina encontra-se em casa somente com a presença de seus criados ao fim de uma festa. A intimidade entre Júlia e um de seus empregados a cada instante se torna mais evidente e impulsiva e uma torpe relação começa a ser desenhada diante nossos olhos até o momento ápice da peça, em que não existe mais saída a não ser a morte da propulsora do problema, Júlia.
            A releitura deste texto encenado por Christiane Jatahy tem como mote a fusão do cinema e teatro e alcança essa proposta utilizando do distanciamento do fazer aqui e agora. A ação dramática e todos os elementos que constituem a cena são produzidos sem o efeito da magia que vemos no cinema e com a eficácia da proximidade que o teatro proporciona como poética artística. 
            Uma estrutura metálica foi montada no palco do teatro Renascença para facilitar a criação de ambientes que remetiam a um set de gravação de um filme. Um painel branco, que ocupara  toda a largura do palco ocultava os cenários utilizados para a encenação, que hora ocorria nesses ambientes que materializavam o interior da casa de Júlia e o quarto de seu empregado. Nas demais cenas, o proscênio do teatro era utilizado como extensão dos cenários e também nesse espaço aconteciam  cenas que quebravam com a identificação do público com a história. Nesses momentos, víamos os atores não mais representando seus papéis e sim se preparando para as próximas passagens da peça.
A união do cinema com o teatro acontecia de forma harmônica e muitas vezes me perguntei se o que assistia era realmente teatro. A edição de cenas pré-gravadas e outras executadas perante nossos olhares trouxeram um ar de presentificação do maquinário cinematográfico que não estamos acostumados a ver em cena. Nos ângulos da câmera qualquer detalhe de gestualidade e intenção interna dos personagens tornavam-se  mais fortes perante o vídeo e, em contra ponto, observei como o vídeo limita o olhar do espectador. Por exemplo, na cena em que Júlia está na cozinha com seu empregado e vacila em aceitar sua proposta de fuga; o corpo da atriz está todo engajado na ação e câmera mantém o foco somente no rosto, cabe daí ao espectador escolher em que vertente empregará sua atenção.
            As questões sociais da peça de Strindberg ganharam uma roupagem que dialogavam com nosso presente político-cultural. Os empregados da obra original foram representados por negros, essa questão traz à tona a discussão do racismo e da classificação trabalhista dos negros, isso a meu ver. Creio que também possa vir a ser uma crítica aos papéis que atores negros ocupam nas novelas, pois quase sempre são oferecidos a esses atores papéis secundários como serviçais de uma classe dominante. A relação dos enamorados também perpassa este jogo de dominação, Júlia mesmo entregue aos braços de seu empregado ainda lhe impõe ordens e ameaças até que o jogo vira e ela se torna vítima da dominação masculina.
            As atuações estavam condizentes com a proposta de encenação. A protagonista é interpretada por Júlia Bernart, que assume o papel de uma menina mimada e alcança as nuances na relação amorosa. Rodrigo dos Santos, o empregado da família, nos mostra um homem firme e de aspirações fortes. Ambos os atores dialogam muito bem com o jogo com as câmeras e com a teatralidade. Todavia, Júlia parece estar mais à vontade e joga com a quebra da quarta parede proposta pelo cinema, dialogando e abrindo a cena para o olhar do público por diversas vezes.
            Por fim, saí do teatro com a certeza de ter presenciado uma tentativa muito feliz de interatividade artística e união de dois universos que ainda podem vir a trazer mais obras com essa poética híbrida de arte. A peça Júlia se traduz em uma audácia teatral que nos leva a compreender a composição de uma obra cinematográfica e nos envolve com a presentificação do teatro. 
*Jeferson Cabral é graduando no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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