sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Júlia por Jacqueline Pinzon


Espectador- Montador

Senhorita Julia por certo não está entre meus textos preferidos de Strindberg, nem sequer me desperta grande interesse um texto que para mim expressa misoginia declarada e que reputo como datado. No entanto, talvez ai resida a força da mise en scène de Júlia por Christiane Jathahy, uma vez que esta oferece um contraponto à defasagem que sinto em relação ao original strindberguiano.
Ao longo de sua trajetória artistica, Jathay vem pesquisando o rompimento e a fricção de fronteiras entre o teatro e as outras artes, fazendo uso de diversas mídias tecnológicas na cena teatral. Tal investigação criativa da diretora carioca, pode se dar por meio da aplicação da técnica narrativa cinematográfica - como em Corte seco, visto no Porto Alegre em cena de 2011; ou em forma de teatro no cinema, como foi a experiência de fazer de seu espetáculo um filme para exibição em salas de cinema. A falta que nos move é uma obra cinematográfica de Christiane Jatahy na qual os atores eram dirigidos por mensagem de texto em treze horas ininterruptas de filmagem, chegando ao ponto do elenco, e posteriormente o público, não saberem mais onde terminava o roteiro e iniciava a vida.
No espetáculo Júlia a perspectiva da direção é trazer o cinema para o teatro. E de fato o cinema e a experiência da filmagem estão lá: a imensidão da tela, o ilusionismo cinematográfico, a atuação realista, a repetição das tomadas, bem como as ideias de corte e montagem que sustentam parte da narrativa. Mas o teatro também está lá, justamente na presença destes elementos que revelam seu funcionamento para o espectador mediante a convenção da teatralidade, anti-ilusionista por excelência. Mas afinal, qual o melhor lugar para confrontarmos estas duas linguagens de modo critico, revelando a tensão subjacente entre a convivência destes diferentes modos operatórios senão o espaço do teatro?
Este me parece ser um dos principais questionamentos propostos por Júlia, uma  narrativa  construída a partir de um diálogo entre os diferentes meios implicados. Em Júlia o palco torna-se um hipermeio capaz de incorporar e ressignificar seu todo a partir da introdução de outras mídias as quais referem-se umas as outras sem abrir mão de suas materialidades. Acho instigante assistir a diferentes momentos  de grande reciprocidade entre os recursos técnico-expressivos, onde uma cena inicia-se numa imagem pré-gravada, se continua no palco através da presença atorial ao mesmo tempo em que é simultaneamente ampliada, editada e projetada em tempo real, através das soluções do vídeo e do uso da ferramenta de manipulação da imagem representada pelo software adotado pela encenação.
O que encanta ao espectador de Júlia, não é apenas o modo como o espetáculo conjuga de maneira lúdica a presença física e a virtual, ou ainda o caráter peculiar como a encenação expõe alguns aparatos da performance no momento de sua ocorrência, fatos que por si sós, já justificariam a assistência do espetáculo. No entanto, o grande encantamento de Júlia é que tal utilização dos meios faz conviver na cena diferentes tempos, espaços e pessoas, facultando ao espectador agir como montador, selecionando seu próprio ponto de vista dos eventos apresentados.
Some-se a isso tudo o fato da direção e os atores não temerem orbitar as relações inflamadas, as quais os fazem atuar  num regime de superaquecimento emocional, ao mesmo tempo em que são invadidos pela câmera que os desnuda o tempo todo. Devido a todas essas ocorrências criativas, a encenação de Júlia cresce aos olhos do público. Mas sem dúvida, o destaque da montagem fica por conta da orquestração da encenadora que sabe contar com o melhor de seus talentosos colaboradores, sintonizando-os com sua proposta de encenação contemporânea, fazendo com que Júlia - durante e depois de sua exibição -, converse eloquentemente com o público da atualidade.
 
*Jacqueline Pinzon é diretora e pesquisadora teatral

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