quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Humores que matan- Central Park West por Tainah Dadda

O 19º Porto Alegre Em Cena começou para mim exatamente com a peça sobre a qual fui convidada a escrever: Humores que matan, montagem de Central Park West, de Woody Allen, dirigida por Mario Morgan, que integra a Mostra de Teatro Contemporâneo Uruguaio promovida por esta edição do festival.
Uma locução no início do espetáculo informa que o texto foi escrito logo após sua polêmica separação da atriz Mia Farrow no início dos anos 90 - um trunfo da divulgação, que sugere que a trama permeada por traições, hipocrisias e abandono foi alimentada por fatos biográficos do ilustre nova iorquino. Lançada a isca, o texto em off se encerra com uma citação de Allen que, em síntese, aponta a mentira como válvula de escape para as agruras da vida.
No palco, porém, a cenografia exposta desde a entrada do público pouco parece indicar que haverá espaço para o descompromisso com a realidade e a verdade que norteia as relações e desejos dos personagens. Pelo contrário. Em cores quentes, das quais o vermelho é predominante, a muito mobiliada sala de estar em que se situa a ação, com seu sofá de três lugares ocupando o centro da cena, num primeiro momento  remete a uma comédia de costumes enlatada, impressão que acaba reforçada pelo jazz standard que marca o início da encenação.
Evidentemente, a escolha da trilha sonora é uma referência à Woody Allen, cujo estilo se mostra logo nas primeiras linhas de diálogo entre Phyllis (Laura Sanchez) e Carol (Gabriela Iribarren). E que estilo! Estabelecida a situação, deflagrado o conflito, o desenrolar da ação traz à cena o melhor do autor: o humor arguto e ácido, a narrativa repleta de revezes e imprevistos, um rol de personagens “neuróticos e nervosos”, que inclui um depressivo alter ego seu, todos obcecados pela busca do prazer sexual e/ou a devastadora certeza da morte, além de Freud, a psicanálise e a filosofia existencialista disfarçadas em piadas.
Diante disso, o cenário literal e ilustrativo como os figurinos, a luz quase inteiramente realista e a trilha sonora escassa parecem revelar a opção por privilegiar a palavra falada. Talvez por estarmos diante de um teatro tradicionalmente de texto, talvez por reverência a seu renomado autor, ou simplesmente por sua construção ser aguda, dinâmica, e elaborada de tal forma que suscita o riso, a imaginação e a reflexão no espectador já por ouvi-lo. E aqui vale destacar a pontual adaptação/atualização feitas por Fernando Masllorens e Federico González del Pino.
Mas, sem dúvida, se a obra de Allen é valorizada na encenação de Morgan é por meio e mérito do elenco, composto por Franklin Rodriguez, Leonardo Lorenzo e Ana Laura Romano, além das duas atrizes mencionadas anteriormente.
Coesos e equilibrados em suas atuações, os cinco atores acompanham com fluidez o ritmo intenso e crescente que o diretor confere à peça. Suas figuras em cena são construídas e reveladas ora em rompantes, ora com sutilezas, evidenciando contrastes interessantes e conduzindo ao cômico desmascaramento social e psicológico que ocorrem aos cinco personagens.
O resultado são bem humorados 90 minutos que, independente de conhecimento  prévio sobre os pormenores da biografia de Woody Allen ou seu estilo literário, lança um olhar crítico e terrivelmente lúcido sobre temas universais que passam pela infidelidade nas relações e o jogo de aparências, mas vão além.
Humores que matan abre espaço para o descompromisso com a verdade, sim, e reflete sobre aquelas engenhosas construções ilusórias em torno das quais, de uma forma ou de outra, todos baseamos projetos, afetos ou a própria identidade.

*Tainah Dadda é diretora teatral        

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