sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Estamira- beira do mundo por Patrícia Fagundes


Estamira é uma criatura de uma potência avassaladora, com sua poesia improvável e sua sabedoria de caminhos tortos e tão reveladores. Sim, ela está em todo lugar. Aparece em um corpo que não é o seu, na atriz que a in-corpora, vibrando na mesma frequência e pulsação. O trabalho de personificação de Dani Barros é impressionante, resgatando a mimeses como um ato de amor. Lecoq afirma que "mimar es formar cuerpo con y así comprender mejor" e que "cuando se ama, instintivamente se mima en uno mismo al outro" (uso a tradução em espanhol porque me parece mais clara que a versão em português). A atriz mima Estamira a partir de um ato de afeto e desejo de compreensão, escutando-a com generosidade. Cada vez mais, sinto que a atuação e o teatro dependem de uma questão de escuta. Um de nossos grandes desafios, talvez o maior: escutar ao outro e ao mundo e à própria pulsação, profunda e generosamente. Escutar Estamira é uma experiência que transforma.
Há também a voz da própria atriz na montagem, que transita entre as palavras de Estamira e o universo da relação com sua mãe. A intensidade emocional no tratamento desse universo de memórias atinge um grau altíssimo, transbordando do palco em uma sessão catártica que chega em ondas até as poltronas da plateia. No entanto, ao transbordar até mim, não deixa muito espaço para que eu transborde. Como diz Estamira, muita informação não deixa espaço para adivinhação. A experiência emocional intensa e particular que acontece no palco de certo modo limita meu espaço de imaginação e emoção. (Na vida mesmo, quando me encontro em situações em que alguém está especialmente abalado ou transtornado, minha reação é assumir o oposto, ficar calma e tentar ajudar). Claro que outros espectadores reagiram de outra forma, sons de choro ecoavam pelo teatro, havia uma atmosfera sensível de emoção. Como o público não é uma massa uniforme, a jornada proposta pela montagem pode acontecer de forma diferente para cada um. Reconhecendo a intenção básica de acontecimento catártico, penso que não cabe analisar aspectos específicos da encenação ou cenoplastia, pois tudo parece convergir em função desse objetivo. Uma viagem a beira do mundo que é desenvolvida com coragem, entrega e honestidade.
*Patrícia Fagundes é encenadora e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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