sábado, 22 de setembro de 2012

Eclipse por Cristiane Werlang



A imagem inicial apresenta ao espectador um cenário inspirado na estética do pintor K. Malevicht (1878-1935) e nos introduz num mundo de formas geométricas e economia de cores. A obra O quadrado negro sobre fundo branco marcou o início do movimento suprematista, na primeira metade do século XX, que valorizava a arte pura em contraposição à arte aplicada. As projeções utilizadas durante o espetáculo, bem como os figurinos, sonoplastia e iluminação, sugerem um jogo que referencia a obra deste artista. A longa diagonal formada por cadeiras chama os personagens para a jornada: cada um revelará algo essencial. Divididos na árdua tarefa de narrar e viver os personagens, os atores recorrem a um jogo delicado, onde o silêncio, as pausas e o não dito, é presença marcante, convidando o público a compartilhar de um tempo e espaço poéticos.  
A atriz Inês Peixoto – com ótima atuação - já nos situa, logo nas primeiras cenas, no universo tchekhoviano, quando declara impetuosamente, tomando para si as palavras da personagem Nina, de A gaivota: “Mas essa peça não tem ação, não tem história de amor, só declamação!?”. Cinco pessoas, cinco personagens, cinco atores esperam o fim de um eclipse solar enquanto trazem à tona temas caros aos seres humanos como fé, talento, felicidade, pecado e vida.
O espetáculo faz parte do projeto ‘Viagem a Tchékhov’ dos mineiros do Grupo Galpão, e foi dirigida pelo pedagogo russo Jurij Alschitz, que também assina a dramaturgia, a cenografia, o figurino e o treinamento do elenco. Em conversa com os atores, indaguei sobre o método de trabalho realizado com eles por Jurij, na montagem de Eclipse. O método inclui, entre outros, exercícios voltados para a cumplicidade do jogo coletivo e o treinamento de velocidades, herança das pesquisas desenvolvidas a partir do elemento tempo/ritmo do “sistema” de Stanislavsky.
Na costura da dramaturgia proposta pelo diretor pode-se reconhecer inúmeros fragmentos de peças, como A gaivota e As três irmãs, e contos, dentre os mais de 150 lidos para a montagem. Chamo a atenção para alguns contos, como: A groselheira – com a destacada atuação da atriz Simone Ordones, que num determinado momento de seu extenso monólogo sobre a felicidade, a personagem declara: “Uma pessoa não necessita de três archin de terra, de um sítio, mas sim, do planeta e da natureza inteira, para que possa desenvolver todas as propriedades e potencialidades do seu espírito livre”; no conto No caminho, depois da personagem ter confessado toda a tragédia de sua vida em virtude de sua inconstância diante de suas crenças e paixões declara: “Vivi, sim, mas naquela embriaguez nem sentia o processo da vida. Não sei se acreditam, mas não me lembro de nenhuma primavera...”; em O relato do jardineiro-chefe, encontra-se um personagem que luta pela crença no ser humano e em sua dignidade. 
Na obra de Anton Tchekhov (1860-1904) observa-se a coexistência do sublime com o material. A mescla desses dois princípios é usada para apresentar a vida em toda a sua totalidade. A espiritualidade, para Tchekhov, é o mais elevado que o ser humano pode alcançar. Seus temas não são situados num tempo histórico, elevando-os assim, para o modo arquetípico, de uma validade eterna, aplicada a todas as épocas e pessoas. O espetáculo conjuga temas que tratam do surgimento, nos personagens, desse impulso para o espiritual.
Os personagens, obrigados a dividir o mesmo espaço enquanto esperam o fim do eclipse, incluem o espectador nesta espera, flertando com o mesmo, numa simbiose entre personagem, narrador e ator. Em alguns momentos, a atuação cai na recitação, tornando difícil para o espectador a visualização das imagens narradas. No entanto, o espetáculo requer uma escuta e olhar diferenciados. Em Eclipse, as ações são mais internas, condensadas, sintéticas. Some a isso, histórias deliciosas, repletas de uma profunda humanidade, contadas e vividas com bom humor e ironia. É bom deixar-se impregnar pelos personagens que, esperando o retorno do sol, debatem sobre a função da arte, a importância da fé e da verdade e o deslumbramento diante da vida.
 
*Cristiane Werlang é atriz e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Colaborou no texto Nair D'Agostini, diretora, professora e pesquisadora de teatro     

           

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