quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Duas mulheres em preto e branco por Giselle Cecchini e Patrícia Silveira


Trazer um conto para a cena teatral é tarefa ainda mais provocadora do que adaptar esse conto para o teatro. Por um lado, a narração que foge da forma dramática tradicional amparada no diálogo e permite outras formas de experimentar a linguagem no teatro: recurso que pode causar estranhamento. Por outro, os diálogos contidos no próprio conto e ações dramáticas que também nos incitam ao envolvimento com o espetáculo. Essa é a proposta de Duas mulheres em preto e branco, no qual o conto de Ronaldo Correia de Brito é montado na íntegra, sem nenhuma alteração do texto original. O conto escolhido faz parte do livro Retratos imorais, lançado em 2010.
A história da peça é sobre duas mulheres, Sandra e Letícia, amigas há muitos anos, que um dia desmascaram uma traição: uma era amante do marido da outra. Diante desse conflito, assistimos ao seu embate. A amante é interrogada e julgada pela amiga traída, que decide ao longo da peça se vai ou não matá-la. Dão-se, então, os diálogos e a descrição do que acontece nesse encontro enquanto o conflito se desenvolve. Aparecem o tema da ditadura no Brasil, os jovens revolucionários do período que depois se tornaram adultos conformados, as mudanças econômicas e sociais que ocorreram no país ao longo desses anos, a traição, entre outros temas, vistos pelo olhar de duas médicas que conviveram com essas questões, mas nunca chegaram a se envolver realmente. A tensão cresce enquanto vamos descobrindo o passado das personagens e entendendo a complexidade humana do conflito em que estão envolvidas.
O palco, uma cama, ou melhor, um grande colchão desproporcional em diagonal, sobre o qual móveis quebrados e caídos, abajures, gavetas e roupas atiradas revelam de imediato a situação dramática. Sobre esses objetos há também cordas iluminadas que cortam o espaço da cena e da plateia. Uma janela ao fundo do cenário não separa a ação cênica do público, mas permite olhar através dela, abrindo a cena para um assassinato que acontece fora do apartamento onde se passa toda a ação. Como a janela está dentro da cena, olhar por ela para esse assassinato abre a possibilidade de uma metáfora visual: a personagem vê o crime prometido na narrativa acontecer fora da ação dramática, porém nós, o público, não vemos nenhum crime. Como em um jogo, somos convidados ora a jogar, ora a ficar no banco – jogo de aproximação e distanciamento; ora a ver, e ora a imaginar o que nos é contado.
O conto é trazido da forma literária para o teatro, permitindo a utilização de outras formas de linguagem que não a dialógica. Essa proposta de dramaturgia nos inquieta e nos faz refletir sobre várias questões referentes à linguagem teatral. Ao assistir o espetáculo, podemos nos perguntar sobre quais as consequências dessa escolha para a ação dramática e sobre quais efeitos a forma narrativa em terceira pessoa pode causar no espectador – distanciamento ou abertura para outras percepções na relação entre fala e ação física do ator, por exemplo. Ou ainda, podemos pensar sobre como o público se engaja nesse tipo de linguagem, a qual nos faz imaginar as ações narradas, mas não vistas por nós. Somos convidados a participar do jogo que se estabelece entre o narrativo e o dramático, não somente no nível do texto, mas da cena como um todo.
Essa relação de proximidade e afastamento também se mostra na relação que as atrizes estabelecem com suas personagens e suas narrativas. Elas narram em 3ª pessoa sobre suas próprias personagens, mas o envolvimento com a narração se dá de forma diferente para cada uma delas. A distância das atrizes/narradoras e suas personagens implicadas na ação parece se revelar ao final, no longo beijo na boca, beijo de “língua”, mas sem abraços, sem envolvimento, um contato frio sem engajamento do corpo. O beijo se revela como símbolo da ligação entre Sandra e Letícia, mas também entre o conto e a cena. Com isso, Duas mulheres em preto e branco se constitui num excelente exercício de provocação à nossa imaginação e nos instiga a outras formas de dramaturgia da cena.

*Giselle Cecchini é atriz e doutoranda em Teoria da Literatura
*Patrícia Silveira é atriz e doutoranda em Escrita Criativa

Um comentário:

Moacir Chaves disse...

Parabéns pela crítica. Muito bem escrita, inteligente, ultrapassa a questão do gosto, o que é muito raro de se ver.
Moacir Chaves