Trazer um conto para a cena
teatral é tarefa ainda mais provocadora do que adaptar esse conto para o
teatro. Por um lado, a narração que foge da forma dramática tradicional
amparada no diálogo e permite outras formas de experimentar a linguagem no
teatro: recurso que pode causar estranhamento. Por outro, os diálogos contidos
no próprio conto e ações dramáticas que também nos incitam ao envolvimento com
o espetáculo. Essa é a proposta de Duas mulheres em preto e branco, no qual
o conto de Ronaldo Correia de Brito é montado na íntegra, sem nenhuma alteração
do texto original. O conto escolhido faz parte do livro Retratos imorais,
lançado em 2010.
A
história da peça é sobre duas mulheres, Sandra e Letícia, amigas há muitos anos,
que um dia desmascaram uma traição: uma era amante do marido da outra. Diante
desse conflito, assistimos ao seu embate. A amante é interrogada e julgada pela
amiga traída, que decide ao longo da peça se vai ou não matá-la. Dão-se, então,
os diálogos e a descrição do que acontece nesse encontro enquanto o conflito se
desenvolve. Aparecem o tema da ditadura no Brasil, os jovens revolucionários do
período que depois se tornaram adultos conformados, as mudanças econômicas e
sociais que ocorreram no país ao longo desses anos, a traição, entre outros
temas, vistos pelo olhar de duas médicas que conviveram com essas questões, mas
nunca chegaram a se envolver realmente. A tensão cresce enquanto vamos
descobrindo o passado das personagens e entendendo a complexidade humana do
conflito em que estão envolvidas.
O palco, uma cama, ou melhor, um grande colchão desproporcional em diagonal,
sobre o qual móveis quebrados e caídos, abajures, gavetas e roupas atiradas
revelam de imediato a situação dramática. Sobre esses objetos há também cordas
iluminadas que cortam o espaço da cena e da plateia. Uma janela ao fundo do
cenário não separa a ação cênica do público, mas permite olhar através dela,
abrindo a cena para um assassinato que acontece fora do apartamento onde se passa
toda a ação. Como a janela está dentro da cena, olhar por ela para esse
assassinato abre a possibilidade de uma metáfora visual: a personagem vê o
crime prometido na narrativa acontecer fora da ação dramática, porém nós, o
público, não vemos nenhum crime. Como em um jogo, somos convidados ora a jogar,
ora a ficar no banco – jogo de aproximação e distanciamento; ora a ver, e ora a
imaginar o que nos é contado.
O
conto é trazido da forma literária para o teatro, permitindo a utilização de
outras formas de linguagem que não a dialógica. Essa proposta de dramaturgia
nos inquieta e nos faz refletir sobre várias questões referentes à linguagem
teatral. Ao assistir o espetáculo, podemos nos perguntar sobre quais as
consequências dessa escolha para a ação dramática e sobre quais efeitos a forma
narrativa em terceira pessoa pode causar no espectador – distanciamento ou
abertura para outras percepções na relação entre fala e ação física do ator,
por exemplo. Ou ainda, podemos pensar sobre como o público se engaja nesse tipo
de linguagem, a qual nos faz imaginar as ações narradas, mas não vistas por
nós. Somos convidados a participar do jogo que se estabelece entre o narrativo
e o dramático, não somente no nível do texto, mas da cena como um todo.
Essa
relação de proximidade e afastamento também se mostra na relação que as atrizes
estabelecem com suas personagens e suas narrativas. Elas narram em 3ª pessoa
sobre suas próprias personagens, mas o envolvimento com a narração se dá de
forma diferente para cada uma delas. A distância das atrizes/narradoras e suas
personagens implicadas na ação parece se revelar ao final, no longo beijo na
boca, beijo de “língua”, mas sem abraços, sem envolvimento, um contato frio sem
engajamento do corpo. O beijo se revela como símbolo da ligação entre Sandra e
Letícia, mas também entre o conto e a cena. Com isso, Duas mulheres em preto
e branco se constitui num excelente exercício de provocação à nossa
imaginação e nos instiga a outras formas de dramaturgia da cena.
*Giselle Cecchini é atriz e doutoranda em Teoria da Literatura
*Patrícia
Silveira é atriz e doutoranda em Escrita Criativa
Um comentário:
Parabéns pela crítica. Muito bem escrita, inteligente, ultrapassa a questão do gosto, o que é muito raro de se ver.
Moacir Chaves
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