domingo, 23 de setembro de 2012

Deus da carnificina por Mauricio Guzinski (3ª parte)


Claro que Carnage se apresenta melhor, muito melhor, nas mãos de Polanski e seu compenetrado elenco, que brilha em cada palavra dita, em cada ação executada, até mesmo ao vomitar e limpar seu vômito. Essa era a opinião generalizada das pessoas do meio teatral com quem tive a oportunidade de conversar, na saída do TSP, aquelas que haviam assistido, antes, ao filme. Como eu, esse público, também especializado e restrito, considerou que, apesar de tantos maus tratos, o texto de Yasmina sobreviveu quase ileso à tamanha violência (e inconsequência). Um tanto disso se deve à qualidade do trabalho do elenco, especialmente, Evelyn e Betti, que seguravam o tempo todo a dignidade da obra, ignorando as “gracinhas” de seu colega Orã.
Na minha opinião, se o diretor excluísse, substituísse ou disciplinasse Orã Figueiredo, e também abrisse mão de alguns elementos desnecessários ao texto em sua montagem (exemplo: com cenário algum, ou mesmo realista, e um elenco heterogêneo, afinado à proposta, o resultado já teria sido muito melhor). Eu até seria capaz de rever, mudar meu juízo e escrever nova opinião a respeito. Nas circunstâncias em que assisti, em Porto Alegre (Flávio deve ter assistido, no Rio, e “eu quero achar” que isso deve ter feito toda a diferença. Pois é muito provável que Orã, ainda não tivesse mostrado suas garras), assim como foi mostrado, aqui, em 12 de setembro, ao contrário de Mainieri, considero ruim o espetáculo e ótimo o texto.
Frente a meus parcos conhecimentos, hesito bastante em classificar Deus da carnificina...seria uma comédia de costumes?!...drama de humor negro?!...tragicomédia contemporânea?!...Não sei! Talvez isso possa ficar a critério de cada leitor, encenador, espectador. É bem possível que essa criação contemporânea nunca venha a ser incluída entre as obras primas da dramaturgia universal de todos os tempos. Nem eu pretendo provar isso, agora. Só o tempo dirá. Isso se sobrevivermos todos a esse conturbado 2012, diante de tantos conflitos internacionais, instaurados e regidos pelo verdadeiro deus da carnificina (e do lucro). Se não sobrevivermos, conforme as previsões mais pessimistas, será uma grande lástima. Yasmina e tantos outros autores ainda não atingiram sua plenitude como dramaturgos. Realmente, ela não está nem aos pés de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Lorca ou Brecht. Por enquanto, não acrescentou qualquer inovação ao que eles já haviam criado, muito antes. Seu grande mérito, nessa obra específica, é o de tecer uma escrita conectada ao público de seu tempo; e comunicar-se com ele através de suas peças, como os mestres anteriores fizeram, a despeito das críticas desfavoráveis que enfrentaram, cada qual, em sua própria época.
Meu querido Mestre, por favor, não interprete mal o que escrevo, tente entender que, talvez, eu ainda o faça a partir de uma percepção exacerbada, comum a meu ego 4 (tipo caracterológico, também chamado “romântico trágico"), tente compreender e desculpar a forma como minha sensibilidade, minha subjetividade recebeu o conteúdo de seus dois comentários, muito bem escritos e fundamentados que foram tornados públicos no jornal ZH. Como tentei dizer, antes, não é minha intenção polemizar, menos ainda confrontá-lo. Talvez o Sr. não lembre. A Doutora Marta Isaacsson, minha orientadora naquele curso de especialização em Teatro Contemporâneo, deve lembrar, ainda, de minhas angústias, em 2001, diante da muralha que costumamos erigir entre criadores e pensadores. Continuo querendo derrubá-las. Talvez, nesse momento, eu me sinta como a personagem representada por Deborah Evelyn, na montagem carioca, um tipo 1, movido pela ira divina (melhor, pois seguir este caminho, defeituoso, para o irado ego 1, é considerado mais saudável para um melancólico ego 4). Não estou em defesa de Yasmina Reza. Penso em minha obrigação como professor de teatro e servidor público. Quero defender meus filhos, os filhos de Dionísio, os dramaturgos, os criadores. Faço isso há 24 anos, através do Prêmio Carlos Carvalho. Quero incentivar o surgimento de algo novo, fresco, próprio do espírito de nosso tempo e que talvez ainda nem haja “jurisprudência” (nem conceitos) para que possa ser defendido. Difícil, por mais que eu “trabalhe sobre mim mesmo”, estude minha personalidade e me observe...difícil desnudar-me dessa máscara quixotesca, que combate moinhos, ainda. Talvez só quando eu me aposentar (o que já está prestes a acontecer. Sou substituível e necessito transmitir meu legado, depressa. Alguém se habilita?).
Ontem, após me deleitar com o talento de Denise Stoklos como dramaturga, diretora e intérprete de Preferiria não? – transposição do texto literário Bartleby, o escriturário (1853) de Herman Melville para a cena contemporânea, dentro da estética criada e denominada por ela Teatro Essencial – presenciei ao bate-papo da atriz com um psicanalista (infelizmente, não consegui gravar seu nome) e o entusiasmado e emocionado público; dentro da programação Psicanalista em Cena. Com toda propriedade determinada por seu ofício, o psicanalista destacou, a partir da encenação de Stoklos, o funcionamento do ser humano, desde que toma consciência de sua inexorável finitude e nosso consequente desejo de transcendência, perpetuação, eternidade. Uma das formas de perpetuar nossa existência pode ocorrer através do legado de valores internos transmitidos aos filhos (na peça de Yasmina, a herança transmitida aos filhos pelo exemplo dos pais – além das máscaras, da hipocrisia social, do verniz da civilização – também é a violência, ou sua dificuldade em usar a agressividade, construtivamente). Segundo ele, a perpetuação também pode acontecer através de nossas obras, em especial as de arte. Ele ainda referiu-se ao importante filme Melancolia, de Lars von Trier, em que essa angústia própria do ser humano não encontra solução, pois a Terra, único planeta com vida inteligente, será destruída e com ele todos os vestígios de nossa civilização, por isso a melancolia, a depressão inevitável (da personagem central e também do diretor do filme).
Este ano estive muito perto da minha própria finitude e da morte de pessoas muito próximas e estimadas. Acompanhei, de perto, o sofrimento de uma grande amiga, cujo filho, jovem e talentoso poeta, com alguns livros publicados – aparentemente, feliz e realizado – não suportou a melancolia de nosso tempo, preferiu voar dela, prematuramente, pela janela do décimo andar. Comportamento muito comum, sempre evitado em manchetes e noticiários, mas praticado, com frequência, por muitos de nossos ídolos. Flávio, diante de tudo isso, estou muito preocupado com nossa função, como pais e professores, em tempos tão difíceis. Quero acreditar no Deus da criação e não no “da carnificina que reinou sobre todos nós há milhares de anos”, como afirma uma das personagens de Yasmina.
Quero me comprometer, cada vez mais, com a vida, com o poder criativo, construtivo, e não com o poder destruidor da palavra. Por mais pessimista que seja a visão impressa pelo criador em sua obra de arte, ela expressa um desejo de mudança. Ou ele não conseguiria realizá-la, “eu acho”. Penso isso do deprimido e genial Von Trier, de Nicky Silver, de David Foster Wallace (muito bem apresentado ao público, que ainda o desconhecia, na adaptação de Breves entrevistas com homens hediondos feita pelos jovens e atrevidos criadores do Teatro Sarcáustico, selecionado, por todos os seus méritos, para constar na grade do festival, que, aliás, está estupendo. Bravo, Luciano! Parabéns a toda a tua maravilhosa equipe!) e de tantos outros inventores de nosso tempo.
Nem eles, nem Yasmina, muito menos, Bertolt necessitam de minha defesa, “não são sagrados”, mas já estão “consagrados” pelo público ou pela crítica. Estou preocupado é com aqueles que ainda não chegaram lá, e com “os que virão depois de nós”. É com a necessidade desses que me preocupo, eles precisam (e merecem) encontrar um campo fértil para o plantio daquele algo novo (que pode ser ainda melhor do que o já conhecido), não posso aceitar que recebam como legado: terra arrasada, estéril.
Como disse antes, já caíram muitos muros (até a Muralha da China andou sendo abalada por um tremor, recentemente), não quero construir novas barreiras, apresentar velhas regras e cartilhas a qualquer criador. Não há mais separações possíveis entre Teatro, Literatura, Dança, Cinema ou Artes Plásticas, ficção, realidade...A surpreendente atualização da Senhorita Júlia de Strindberg, por Christiane Jatahy, mostra isso muito bem (só fui assistir a este espetáculo, graças ao sincero e ótimo comentário de Jacqueline Pinzon, no blog do Em Cena. Obrigado, Pinzon! Valeu e muito!). Plagiários também mostra isso, esplendidamente, e comprova o talento dramatúrgico de nosso jovem e brilhante Diones Camargo (que bela homenagem a Nelson Rodrigues, que fantástico investimento da Braskem e do Em Cena, que oportuna reunião de criadores! Que belo resultado!). Tive que exclamar: Bravo! E aplaudi-los, entusiasticamente, de pé, por um longo período; além de expressar, diretamente à equipe, o prazer que senti ao assisti-los, durante sua última sessão no festival. Espero que aquela seja apenas a terceira de muitas outras. É mais um excelente trabalho que merece ter uma longa vida e ser assistido por muito mais gente.
Flávio, eu fiquei em dúvida se deveria enviar esta looonga carta para teu endereço, particular e privado, ou torna-la pública, aqui, neste blog. Optei pela segunda opção porque “achei” que essa divergência de opiniões poderia interessar também a outras pessoas, instigar a reflexão entre teoria e prática, criação e crítica, etc. Não quero gerar polêmica alguma. Gostaria apenas de defender, aqui e agora, a criação de um campo favorável, mais apropriado ao exercício da criatividade de toda essa “gurizada” com sangue dionisíaco nas veias (e mesmo para os apolíneos, também presenteados com a chama de Prometeu). Não temos mais tempo para estarmos agarrados a ideias do passado, mortas ou moribundas, muito menos a pré-conceitos. Precisamos de sangue novo, fresco e bom, para garantir nossa eternidade (como os vampiros que fizeram Sharon e Roman dançar; será que estamos tão distantes, ainda, de nossa “verdadeira natureza”). Precisamos acabar com as diferenças entre os montecchio e os capuleto; assim como, entre criadores e pensadores (estes últimos não sobreviverão, nem terão qualquer razão de existir, sem os primeiros). Não podemos julgar o que vemos hoje com o olhar de ontem. Conceitos só podem ser elaborados após a criação (impossível já catalogar e encaixotar o que está sendo feito, aqui e agora). Poderiam até ter o nome de pós-conceitos (mas nunca: pré). Isso talvez deixasse as teorizações um pouco mais claras, colocasse as coisas no seu devido lugar. Inverter a ordem toda pode tornar a obra de arte, demasiadamente, artificial (no pior sentido da palavra), o artificialismo (no melhor do termo) já está, ali, em sua essência. Equivaleria a inverter o curso da água dos rios, secar a terra e matar a fonte. Transformaria o fruto da criação em alimento congelado, coisa morta e sem nutrientes, que só poderia ser exposta em balcões de buffet a quilo (ou nos museus de história). Precisamos nutrir os vivos e deixar os mortos em paz. “Sagrada” é...(ou deveria ser) “a infância” (valham-nos as ideias de Reichert) e a juventude daqueles que começam a criar, agora. Estou velho, professor! Nos meus arquivos, quase corrompidos: Will e Macbeth, Bertolt e Setsuan, Federico e Yerma, Andrade e Dolor, Nelson e Doroteia, Ivo e Teresa, Carlinhos e Tuda...parecem-me, criadores e criaturas,“ insubstituíveis”! Preciso esvaziar, depressa, a lixeira para abrir espaço ao novo! Insubstituíveis todos somos, é verdade, porque únicos! INSUPERÁVEIS, NÃO! A humanidade continua a quebrar, a cada ano, os recordes anteriores. Podemos avançar muito além de 2012 (se entendermos melhor as profecias de civilizações que já desapareceram na poeira do tempo)! Tenho certeza que é dentre eles, os jovens, que surgirá o Brecht do futuro (quem sabe, ele já esteja por aqui, dentre esses 2.073 [de 22 estados brasileiros] inscritos no Prêmio Carlos Carvalho. Estou muito otimista em relação ao teatro feito em Porto Alegre, no Brasil e no Mundo, hoje.
Agradeço-te muito, Flávio, por teres dedicado teu tempo para escrever sobre Deus da carnificina; agradeço, também por teus comentários terem se tornado públicos, na Zero Hora; pois me fizeram abrir, novamente, os olhos, os ouvidos, a boca e, ainda mais, meu enorme nariz. Que maravilha que nossos jornais estejam reabrindo espaço para a crítica teatral e para os jovens que praticam a escrita para o palco! Adorei ver o mais promissor de todos, Diones Camargo, ocupar capa inteira do Segundo Caderno, com suas criações (mesmo ao ler, também ali, sua crítica sobre as nossas premiações. Afinal, “toda a unanimidade é burra”, mesmo! Precisamos considerar a opinião dele e a dos demais concorrentes para continuarmos evoluindo, como servidores públicos.
Não estou defendo Yasmina Reza e seu texto. Posiciono-me ao lado de Deus da carnificina para defender “a dramaturgia”. Especialmente a nova, que ainda não foi consolidada. Desejo que ela possa se firmar, desenvolver, amadurecer (como está acontecendo com Diones Camargo, aqui e agora). Flávio, se me permitires, um conselho de amigo: tua experiência, assim como a minha, é muito maior e mais fecunda, no terreno da educação, da formação; poderemos evoluir muito, nós dois (e todos lucrariam muito mais com isso), se não separarmos tanto o olhar crítico daquele outro que estimula a crescer, a amadurecer, a construir o novo; o que está sendo gestado, agora, que nem temos condições de apreciar, racionalmente, intectualmente, ainda; esse é o olhar de professor; ou melhor, do Mestre (essa, sim, é a tua verdadeira natureza. Isso, eu “não” acho; eu tenho certeza! Tive a oportunidade de conhecê-la muito bem, 11 ou 12 anos atrás, como teu discípulo. Trabalho sobre mim mesmo, ainda hoje, seguindo teu paradigma, desde que nos introduziste ao universo das letras de Bernard-Marie Koltès [que eu ainda não conhecia e passei a apreciar] e aos conceitos de narrativa lacunar, hipertexto, intertextualidades e alguns outros [que eu intuía, apenas, e que, a partir de então, passei a empregar com maior propriedade]. Mestre, quero chegar também a essa mesma natureza, um dia. Quem sabe, estejas apenas me provocando a ingressar no Mestrado, agora. Cada vez que encontro Marta Isaacsson, sinto-me provocado, ao mesmo, também por ela. Mas não sei se me enquadro!).
Bem, agora chega! Gostaria muito de continuar esse diálogo contigo, mas em outro momento (até porque todos já cansaram de ler minhas rubricas... aliás, parênteses [e parágrafos] intermináveis. Além do que o dia amanheceu, outra vez, e falta tão pouco para o término de nossa maratona anual de Teatro [e eu ainda não consegui enviar ao blog qualquer dos textos que iniciei, logo após a abertura, em 04/09/12])...Quem sabe possamos tomar um chá ou café, Flávio, no TSP, antes...ou, depois, do próximo espetáculo, para rirmos um pouco de tudo isso, talvez, então, degustando um bom carmenère (como, algumas vezes, tive o prazer de fazer com meu outro generosíssimo Mestre, o Bender). Flávio, acaba de me assaltar, agora, outro temor...teria eu te usado, enquanto escrevia estas doze laudas, como bode expiatório das culpas que atribuo ao papel do pai, no meu próprio teatro familiar? Enxerguei em ti o fantasma de meu pai, numa espécie de Hamlet às avessas? Agi “como se fosse eu” o carniceiro Macbeth para usurpar o poder do rei (o pai castrador!)? Será que teus comentários despertaram em mim a sombra, o demônio da inveja? Inveja do poder de tuas palavras concisas, objetivas, melhor fundamentadas do que as minhas (oriundas da “delirante lucidez” de minha mãe, Estamira)? Peço-te milhões de desculpas. Tenho muito carinho por ti, Flávio. Insisto em meu convite. Tudo o mais, pode ser fruto de minhas máscaras, de minha sombra, de meu ego, e eu espero que me perdoes.
Saiam já deste corpo que não lhes pertence, coisas ruins!
Eparrei Iansã! Odoia! Ora Aie Eu! Patacori Ogum Iê! Kaô Kabecilê! Atotô Babá! Selai nossos corpos diante do inimigo! Protegei nosso espírito dos deuses da carnificina e da morte!
Fazei-nos receber as boas coisas da Vida na Terra!Comida, Diversão e Arte para todos!
Evoé, Dionísio!
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

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