sábado, 22 de setembro de 2012

Deus da carnificina por Mauricio Guzinski (1ª parte)



Tenho o maior respeito pela opinião de Flávio Mainieri, um de meus queridos Mestres. Foi excelente professor da disciplina Dramaturgia Contemporânea, durante o curso de Pós-Graduação Teoria do Teatro Contemporâneo, realizado pelo DAD/UFRGS. Especialização que tive a oportunidade de concluir, em 2001, momento em que tive o privilégio de conhecê-lo mais de perto. Segundo Flávio Mainieri, “Em Deus da Ccrnificina a tensão entre as personagens aumenta e revela a crise conjugal e das relações interpessoais enfrentada pelos dois casais, comprovando que o homem, na sua natureza, carrega a violência. Em sua essência, o homem é um ser violento, um nada é suficiente para que o selvagem que habita em nós se manifeste desmanchando o verniz civilizado – esse é o verdadeiro tema da peça (os grifos são meus).” (...) “Não posso deixar de fazer referência, como contraponto, a um dos ensinamentos do mestre Brecht” (...) “ o teatro deve mostrar o mundo como possível de modificação, e o homem não deve ser mostrado como algo acabado – o homem não é, ele se transforma.”
Concordo com o pensamento de Brecht, lembrado por Mainieri. Apesar de não assinar embaixo de sua cartilha, hoje em dia. Nem eu, nem mesmo o Berliner Ensemble do nosso tempo. Nem do ponto de vista estético, nem do ideológico. Não é mais possível concordar, totalmente, com o Mestre Brecht. Vivemos em uma época diversa, que pode até ser considerada niilista; vivemos o tempo de derrocada das utopias, de queda de muros, de derrubada de torres-gêmeas; de comunismo-capitalista; da morte de nossos ídolos, da agonia do heroísmo, e outras tantas “contemporaneidades”.
Uma das colocações que mais me agradou na entrevista de Jutta Ferbers, dramaturgista do Berliner, concedida ao jornal ZH (04/09/12) foi de que o “ensemble” não considera Brecht "algo sagrado", não o entende como um “professor”, mas sim como “um diretor” que “gostava das pessoas rindo.” (...) “Essa teoria” (a de Brecht) “foi escrita em um tempo específico, para um tipo de teatro específico. A única questão é fazer teatro para as pessoas abrirem os olhos e ouvidos. E bocas (risos)” (os grifos são, novamente, meus).
Data venia, querido Mestre, por meu viés altamente subjetivo e muito menos erudito, me atrevo a discordar de suas colocações.
Belo texto este de Yasmina Reza, dramaturga nascida na Argélia (1959) e radicada na França. Ótimo roteiro, assinado, por ela e Polanski, que resultou em mais uma grande obra desse excelente e polêmico diretor de origem polonesa, nascido em Paris (1933, onde vive “refugiado” a partir de 1977). Quase deixei de assistir ao filme, influenciado negativamente por sua crítica, professor! Seria uma lástima. Adorei! Para mim o filme está ente os melhores deste ano. Polanski (não só em minha opinião) foi criador de obras memoráveis como Repulsa ao sexo (1965), A dança dos vampiros (1967, filme em que ele aparece ao lado de Sharon Tate, antes que eles e seu filho fossem brutalmente atingidos pelo deus da carnificina, em 1969), O bebê de Rosemary (1968), A tragédia de Macbeth (1971), Tess (1979, dedicado à sua esposa, brutalmente, assassinada aos 26 anos, durante o oitavo mês de gravidez, pelos fanáticos da “família” Manson. A enorme repercussão deste crime chegou a provocar mudanças nas leis americanas), A morte e a donzela (1994), O pianista (2002), O escritor fantasma (2010) e Carnage (2012). Ou seja, antes de Reza, ele já havia incursionado, com êxito, pela literatura dramática, pelo menos duas vezes, ao adaptar para a tela William Shakespeare e Ariel Dorfman (que teve a mesma obra encenada, aqui, pela Tribo de Atuadores ÓiNóis Aqui traveiz, em 1997).
Em sua reflexão sobre o filme e a peça (publicada na ZH de 13/06/12), Mainieri afirma que Yasmina “usa temas que (...) não são aprofundados”, que ela é superficial, “uma leitora de manchetes dos jornais” (desta vez, em sua opinião, publicada no ZH de 14/09/12) e que ele, Flávio Mainieri, “Ao sair do teatro, e do cinema também, tinha a certeza de ter assistido a um espetáculo com um texto falsamente moderno, inclusive pela ausência de uma história, que é um dos elementos do teatro pós-dramático, e que postulava o retrógrado preceito de que o homem é intrinsecamente mau, dominado pelo deus da carnificina”(em 13/06/12, com grifos meus).
Não tive a oportunidade de conhecer Reza, em Paris (sequer ler o texto no idioma original), nem assistir suas encenações nos teatros privados, de lá. Segundo o professor Mainieri: “teatros que não perdem de vista o lucro, satisfazendo desta forma o que a indústria cultural identifica como a vontade/gosto do público.” Não conheci Le dieu du carnage (2006) no idioma e versão originais, nem na versão uruguaia, apresentada na 16ª edição de nosso festival. Infelizmente, não assisti. Fui conhecer essa obra na telona, através dos olhos, lentes e filtros de Polanski, e através do corpovoz  de Kate Winslet e Christoph Waltz, estes nos papéis de pais do menino agressor; e Jodie Foster e John C. Reilly, encarnando os pais do menino agredido. Quatro excelentes atores hollywoodianos que tiveram seu talento extraído, ao máximo, pelo experiente diretor franco-polonês, forçado a filmar na França. Só então conheci o texto da dramaturga argelina, já roteirizado por ela e Polanski, no cinema, em inglês com legendas em português. É bem possível que isso – forma de contato com a obra, bagagem pessoal de informações e subjetividade de cada receptor – tenha feito toda a diferença e tornado nossos pontos de vista tão divergentes. Por mais que me constranja contrapor-me a meu professor, me senti no dever de fazê-lo.
Por mais banal que a fábula de Yasmina possa ser considerada – um menino de 11 anos é agredido por um de seus colegas de escola, forçando um encontro dos pais do “suposto agressor” com os progenitores da “vítima”, na tentativa de superação do problema – a história existe (não só nas manchetes de jornal do mundo inteiro, mas no texto, na tela e no palco). Reza toma como ponto de partida o tão debatido bullying para escancarar a origem do crescendo de violência que presenciamos em nosso cotidiano. “O texto de Yasmina é enxuto”, como diz Flávio. No meu entender também. Não há uma palavra (aliás que belo jogo de palavras o que é proposto por essa autora, nesse texto), não há uma única ação que não contribua para o acirramento do conflito, para a melhor compreensão do tema e para o desnudamento, o despencar das máscaras sociais, a exposição do ego de cada uma das quatro personagens, muito bem construídas pela autora, pelo quarteto excepcional de atores, magistralmente conduzidos pela batuta de Roman Polanski. Difícil respirar, durante a exibição, no cinema Guion.
Na minha opinião, Deus da carnificina, não é um texto maniqueísta, moralista, niilista ou determinista; não apresenta o homem irreversivelmente perdido, incapaz de transformar sua consciência, nem de subir mais um degrau na escala de sua evolução. Essa complexa tarefa, sem qualquer ranço de um teatro panfletário ou didático, é lançada para que o espectador a resolva. Em um exercício que pode ser considerado a função mais nobre da arte. Não fosse assim, o texto não teria sido escolhido (“eu acho”) pelas duas equipes, como o mote de suas criações, submetidas ao nosso crivo.
Se, ao invés de montagem cinematográfica, a obra de Polanski fosse encenação teatral, eu diria que o diretor e sua equipe, que incluiu Yasmina Reza, dividindo com ele a adaptação do roteiro de sua criação, tiveram o Mestre Brecht como uma de suas estrelas guia: “A única questão (deles) é fazer Teatro (Cinema ou Arte. As maiúsculas são minhas) para as pessoas abrirem os olhos e ouvidos. E bocas.” (para rir e, eventualmente, para tomar fôlego).
O quarteto de personas é composto com a clareza de quem até parece saber estudar a alma humana através do eneagrama (suspeito que Shakespeare tenha sido outro criador teatral que também soube utilizar essa ferramenta, diante da diversidade de personalidades tão precisas, completas e complexas que sua obra apresenta – obra centrada, também, no poder da palavra; naquilo que a palavra poética pode oferecer aos nossos sentidos; no poder transformador que a reflexão provocada pela escuta das palavras, vindas de um autor/ator, no palco, pode trazer aos mecanismos de funcionamento de quem se entrega à recepção de uma obra teatral).
(continua)
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

Nenhum comentário: