domingo, 16 de setembro de 2012

Deus da carnificina por Guilherme Nervo


Humor sem alma 
         Yasmina Reza é uma argelina radicada na França, dramaturga contemporânea, é a autora de Deus da carnificina, texto da montagem carioca de Emílio de Mello e também da obra cinematográfica de Roman Polanski. O texto dramático, além de fazer rir, quer fazer refletir. Deseja explorar de que forma um encontro entre dois casais adultos - a fim de pacificar a relação dos filhos - acaba se tornando uma exibição de seus próprios demônios, de maneira a construir um ambiente asfixiante e insalubre, no qual o instinto é a única lei. Assim eles ficam numa espécie de masturbação sem fim, onde não há vencedores nem perdedores, todos estão na posição de escravos de suas próprias ambições e de suas trevas pessoais. Eles trocam agressões físicas e verbais, o que vai contra a imagem criada inicialmente dos casais: centrados, esclarecidos e guardiões do controle da situação. 
            Ferdinando bateu com um pedaço de pau a boca de Bruno, danificando seus dentes incisivos. Exatamente por isso os pais marcam um encontro no apartamento dos pais de Bruno, a suposta vítima da agressão. No filme de Polanski fica muito clara a vontade de resolver logo a situação e cada um retomar sua vida, mas há um elemento dominante: os interesses, a gana de proteger os filhos e um prazer insano de chafurdar na lama de suas próprias prisões existenciais. É o que se nota no final da peça, com o apartamento virado do avesso. Na montagem carioca esse impulso de ir embora aparece menos, portanto não nos causa a mesma sensação de angústia causada pelo filme. A peça não causa uma sensação de profunda agonia que, eu acredito, seja própria do texto de Yasmina Reza. O cenário tem um papel importante na peça, vários livros empilhados e uma mesa de encaixe de várias pecinhas de lego. É uma ideia genial, porque ficamos horrorizados com a sensação de que a qualquer momento a mesa vai se partir e os livros irão tombar. Nenhum dos dois acontece, parece que são incrivelmente resistentes.
            Antes das luzes apagarem e a peça iniciar, ouvi um espectador dizer que tinham dito a ele que a peça era mais legal do que o filme, que era mais engraçada. Então pensei se esse era um critério válido para qualificá-la como melhor. Melhor ou pior, seria diferente. Interessante que esse mesmo espectador riu pouquíssimas vezes durante os 90 minutos da peça. Uma boa comédia não se sustenta apenas no timing, também é preciso a construção de uma atmosfera de tensão que será dissolvida pelo humor. O riso libera a tensão, o que o texto dramático certamente proporciona, diferente da montagem, que encontra dificuldades nesse caminho, provavelmente por aproximar-se da linguagem televisiva.
            Partindo desse princípio: de que a montagem carioca opta por uma linguagem de comédia mais televisiva do que teatral, é importante dizer que esse elemento contaminou a atuação do elenco, em especial o ator Orã Figueiredo, que usa praticamente o mesmo tom de voz do início ao fim da peça. Uma voz grave, exageradamente alta e pouco orgânica. Esse personagem, o pai de Bruno, polariza a atenção do público, uma vez que ele é o “personagem-piada”, cada comentário, fala ou movimentação dele causa riso no público - em parte do público. O recurso utilizado foi similar à montagem de Pterodátilos, no qual Marco Nanini polariza a atenção da plateia a partir de um humor, muitas vezes, apelativo e superficial. O que prejudica a integridade do texto, já que novas piadas são incluídas e outras são suprimidas. 
            Quem sustenta Deus da carnificina é Paulo Betti e Julia Lemmertz, casal que interpreta os pais de Ferdinando, o suposto agressor. Apesar de não atingirem a atmosfera de oposição e jogo que Christoph Waltz e Kate Winslet atingem, na obra de Polanski, o casal consegue elevar a montagem à situações de tensão e humor convincentes e muito naturais. Por exemplo, quando Paulo diz que o seu filho é mesmo um selvagem ou quando diz estar começando a gostar da personagem de Deborah Evelyn, que começa a surtar e morde a orelha do marido. Também são memoráveis alguns momentos de Julia, quando ela está bêbada e começa a dar sua opinião sobre tudo o que está acontecendo. Ela poderia repetir “- Eu acho” sentada em cima da mesa umas dez vezes e ainda assim seria engraçado, porque ela encontrou uma forma única de dizer essa fala, numa mistura entre timidez, ousadia e tolice. Quanto à Deborah Evelyn ela tem muita coerência nas intenções que apresenta em cena, mas seus surtos não convencem. Ela grita, esperneia, lança uma cadeira, sobe em cima da mesa e parece que nada disso causa furor ou empatia, provavelmente porque ela não externou algo de dentro, mas se ajustou a uma forma externa do que seria estar furiosa. 
Considerando que os casais criam um campo de batalha em cena e batalham entre si - sem aliados - a situação dos filhos parece diminuir drasticamente de tamanho, fazendo com que uma agressão física dos filhos nem passe perto de todas as agressões trocadas pelos pais. Não por acaso todos eles se ajoelham a um Deus que está mais para um Diabo, o Deus da Carnificina.
*Guilherme Nervo é graduando no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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