segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Agreste malvarosa por Guilherme Nervo

 Flor arrancada*

Malva-rosa é uma flor de pigmento violeta ou rosa, exibe um porte charmoso e possui poderes de cura. Para mim, a montagem da Cia. Amok de Teatro também exerceu um papel de cura. Eu saí embevecido da Sala Carlos Carvalho, com uma mistura de euforia e admiração. Senti o pólen extasiante da flor do sertão através de um texto recheado de metáforas, uma delicadeza incomparável, uma sonoplastia certeira, uma direção seca e encadeada, e atuações poderosas.
Parece ser impossível ficar indiferente a Agreste malvarosa. Se alguma vez eu tirava os olhos das atrizes Milene Ramalho e Rosana Barros, fazia para escutar também com os olhos a música do instrumentista Beto Lemos, que permaneceu sentado em uma cadeira pobre, executando o acompanhamento essencial no corpo do espetáculo. Sentei em um assento que fazia margem com o palco, portanto eu era banhado pela luz quente, enquanto recebia os olhares penetrantes das atrizes contando uma história de amor. Entretanto, inicialmente ou durante toda a peça, dependendo do espectador, a linguagem de atuação escolhida tem a capacidade de repelir, pois se trabalha com o exagero dos movimentos e da fala, instaurando um ambiente de força poética. Realmente, quando saí do teatro vi a maior parte dos espectadores deixando escapar elogios, mas também tinha gente de cara feia, que admitiu ter tido a vontade de se retirar do teatro. Pergunto-me como ficar desconfortável perante duas atrizes em ebulição? Justamente pela presença transparente da técnica, que não agride ou se sustenta apenas por si, mas que se envolve com o impulso da emoção como numa grande dança entre atriz e personagem.
Tanto a parte narrada quanto a parte dialogada da montagem estão bem entrelaçadas e fluem naturalmente. A direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt decide intercalar a narração e o diálogo entre as atrizes, elas repartem o texto a fim de materializar as personagens. Enquanto Milene Ramalho segue o caminho da viúva ingênua, Rosana Barros toma conta do lavrador forte e de pele marcada. O texto do pernambucano Newton Moreno explora a inocência e ignorância das mulheres do interior do sertão nordestino, rechaçadas por um meio social que devora a diversidade com a própria boca. O início é uma celebração à descoberta amorosa, passamos a conhecer o crescimento de uma chama entre dois lavradores separados por uma cerca. Como diz a obra: Eram tímidos como caramujo. Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu. O buraco na cerca faz com que a mulher tenha coragem de cruzá-lo e caminhe até o homem. Ouvia-se uma pele rachando na outra. E assim o casal viveu longe de tudo, em um casebre durante vinte e dois anos. Até o momento em que ele morre e as vozes dispersas da sociedade adentram enfurecidas o casebre. Descobriu-se que o marido, de nome Etevaldo, é fêmea.
A encenação não trabalha com a estética naturalista, acredita na linguagem da poesia, na universalidade dos sentimentos e das situações. A diretora Ana Teixeira diz que o intuito é recriar o agreste e não mostrar a realidade do agreste. O sertão nordestino é desterritorializado a partir do momento em que exploramos um sentimento incondicional de amor entre duas mulheres. O contexto social nordestino aparece na obra de Newton Moreno, a partir das expressões tipicamente regionais e da reação ultraconservadora do povoado diante da situação. As atrizes constroem personagens com um forte sotaque nordestino, modelando os corpos de acordo com a troca de personagem. Basta enrolar parte do figurino na cabeça e pronto, surge uma velha. É o ator com ele mesmo, teatro pobre que acaba se desdobrando em uma riqueza descomunal. É o que vemos na construção da personagem do padre, por Rosana Barros. Desesperada, a viúva pede que ele benza Etevaldo para que o espírito dele descanse em paz, mas o padre se recusa devido ao escândalo causado. Ele diz: Pelo menos se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Já enterrei gente que nem você e ela...Etevaldo. Uma fala que serve como termômetro da hipocrisia da instituição religiosa.
O autor confessou que havia escrito o espetáculo pensando na direção de Ana e Sthephane, o que explica a harmonia entre texto dramático e montagem. Newton aceitou o convite de revisitar sua obra original, Agreste (premiada com o Shell e o APCA), transformando o casal masculino em feminino. E diz também que foi um presente voltar ao ninho de fêmeas, pois é aí que reside a origem do texto: através da conversa com uma amiga que contava, transtornada, o desconhecimento corporal/sexual entre as mulheres do sertão. O que acaba se encaixando com o imaginário sertanejo, no qual a mulher se traveste de homem a fim de espantar futuros males como a submissão.
Agreste malvarosa expõe a força brutal do preconceito. Escancara os limites que uma construção cultural pode alcançar. Numa terra onde mulher deita com homem, não há espaço para descobrir-se mulher com outra mulher. A norma da heterossexualidade é clara e irredutível, o que está representado de forma excelente na figura do Delegado, próximo ao término da peça. Delegado - E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea com fêmea. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho para nunca mais se confundir.
Esse foi o momento que mais capturou a minha atenção, o trabalho vocal acasala muito bem com o texto, evocando figuras espantosas de autoridade. Mais interessante ainda, é ver a transição a partir do choque corporal entre a figura máscula e indignada do Delegado, com a figura acuada, espantada de Maria. Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda.
Essa descrição do estado de humilhação da viúva, não mostra apenas a dimensão da perda do marido, que a coloca num estado de vulnerabilidade, mas também a sensação do indivíduo homossexual perante o preconceito que é capaz de arrasar. A eficiência do último quadro da peça é conquistada através dos méritos do cenário e da iluminação. Uma luz vermelha penetra em cada brecha do casebre de palha e madeira, incendiando o casal de amantes. Mas na crença da viúva, aquilo não era tragédia nenhuma, Deus havia escutado seu canto. Uniria ela com Etevaldo.
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
* Guilherme Nervo é estudante do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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