segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A última gravação de Krapp por Marcelo Adams

 Bob não é bobo*

Bob Wilson, este brilhante encenador norte-americano que, felizmente, continua em plena atividade, dirigindo espetáculos inesquecíveis e provocadores ao redor do mundo, sabe que nossos tempos encontram perfeita representação na obra teatral de Samuel Beckett. Afora as peças longas (mais conhecidas) de Beckett, como Dias felizes e A última gravação de Krapp, sonho em ver encenados por Wilson textos mais curtos e de ainda maior complexidade, como Words and music, Cascando, Not I, Footfalls (a lista se estenderia por vários outros títulos). Já que, por enquanto, isso é matéria de sonho, nos deleitemos com este A última gravação de Krapp, apresentado no 18º Porto Alegre em Cena.
É possível ser purista ainda em nossos dias, defendendo esta ou aquela maneira de encenar um texto? A resposta é tão óbvia que não merece réplica. O único compromisso que uma encenação deve ter é com sua coerência interna e, naturalmente, com sua efetiva comunicação. Quando escrevo comunicação (obviamente que nos casos em que ela é buscada), quero me referir à possibilidade que a encenação tem de apresentar um discurso relevante, impactante, esteticamente marcante. É o caso de A última gravação de Krapp. Esqueça aquela estética cinzenta, encardida, que se costuma associar a Beckett. Bob Wilson nos apresenta o aço, o plástico. Esqueça o catarro, Bob nos entrega a assepsia. Krapp faz 69 anos e ouve velhas fitas onde, 30 anos antes, gravara suas impressões sobre acontecimentos envolvendo uma mulher. 30 anos se passaram, Krapp não é mais o mesmo, todas as suas células se renovaram, ele é outro ser, inteiramente distinto daquele do passado. A única coisa que identifica esses dois Krapps, distantes tantas décadas no tempo, é um nome: Krapp (e note-se a ironia de Beckett, crap, em inglês, é merda).
Bob Wilson como ator vive uma figura desumanizada, quase um robô-velho que surpreende-se com sua rendição, no passado, ao amor. De antíteses a encenação se serve: o visual clean, contemporâneo, da cenografia, opõe-se à ultrapassada tecnologia do gravador de rolo. Imagens evocativas do afresco A criação de Adão, de Michelangelo, colocam Krapp como o primeiro (e último dos homens), em conflito com o Grande Criador. Deus expressa-se com trovões ensurdecedores, relâmpagos e chuva abundante. Só resta a memória, e é a ela que Krapp recorre para fazer passar o tempo. Em síntese, a dramaturgia de Beckett tem um tema recorrente, que é o da espera e, em sua obra tardia, a memória e a impossibilidade de preservá-la.
Visualmente, o espetáculo é arrebatador, perfeito no uso do manancial técnico. Não se enganem os desavisados: o perfeccionismo estético de Bob Wilson encobre uma profunda e genial reflexão sobre o Homem. Bob Wilson não é bobo.
* Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo, professor do curso de Teatro: Licenciatura da UERGS

Nenhum comentário: