segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pterodátilos por Rodrigo Monteiro

Pterodátilos*

Pterodátilos, escrito em 1993, por Nicky Silver, é um texto teatral sem protagonistas. Ou melhor, o imenso esqueleto de dinossauro, que é, ao longo do texto, construído aos poucos por um dos personagens na sala de sua casa, é que é o protagonista. No entanto, há um personagem vertical, isto é, há, entre as figuras, uma que é vértice da história contada pelo texto. Esse personagem não é nem o Pai (Arthur), nem a Filha (Emma). Tampouco é a Mãe (Grace) ou o Noivo (Tommy). Trata-se do Filho (Todd), pois é, a partir de sua chegada, que o recorte inicial da narrativa acontece. Será ele, também, aquele que terminará a história, isto é, fechará o recorte aberto.
(Se você não assistiu ao espetáculo e não quer saber como ele termina, por favor, pare esta leitura por aqui. Eu vou contar, aviso, como é o fim da história contada na peça.)
Dito isso é preciso que fique claro qual é o ponto de leitura mais seguro (seguro porque é através desse ponto que os demais elementos que estruturam a narrativa se organizam quando produzidos de forma regular e positivamente equilibrada). Todd tem AIDS. Depois de cinco anos longe, ele retorna para o seio de sua família milionária (o pai é presidente de um banco). Por ter AIDS, é convencionalmente certo que ele vai morrer em breve, embora não apresente sintomas aparentes. Todd é, assim, o moribundo da família quando a história começa a ser contada. É ele quem que está mais próximo da morte em uma família “sã”: o pai é um homem de negócios bem sucedido, a mãe é uma socialite invejada, a irmã está prestes a se casar com o namorado. Nicky Silver, habilmente, não para por aí, avançando através das aparências e exterminando com elas a seguir.
Logo nas primeiras cenas, o personagem Todd se apresenta como um membro da dinossauromania (alguém lembra da série A família dinossauro, tão famosa no início dos anos 90?), entrando e saindo com livros sobre as criaturas extintas há milhões de anos. A metáfora, então, se estabelece. Como aquelas criaturas que dominaram o mundo por centenas de séculos foram extintas? A milionária família Duncan e os dinossauros estão, no nível da linguagem, em similitude, o que se confirma ao longo da peça quando um a um os personagens todos caem. Todd será a única exceção, ele que é o filho “aidético”, o moribundo, o aparentemente mais fraco e aquele mais próximo da morte. Como um esqueleto de dinossauro, ele permanecerá vivo e em pé depois do fim da história, à guisa do que aconteceu com sua família que dominava o mundo.
Esse, no entanto, não foi o ponto de leitura de Felipe Hirsch, diretor de Pterodátilos, peça participante do 18º Porto Alegre em Cena. Ao permitir que Marco Nanini, a estrela do elenco, o ator com (merecidamente) o maior nome e pelo qual a maioria das pessoas acorrem à audiência, interpretasse os personagens Emma e Arthur (a Filha e o Pai), Hirsch apaga (ou diminui consideravelmente) a importância do personagem Todd, o Filho. Uma vez que não há jeito certo ou errado de atualizar uma obra (Nicky Silver faz literatura. Hirsch faz teatro) construindo outra, resta à análise evidenciar os resultados, sem que seja impróprio perder de vista a obra primeira.
O cenário criado por Daniela Thomas, uma das cineastas mais importantes do Brasil, assume importância fundamental nessa montagem produzida por Carolina Tavares e Fernando Libonati. Em um primeiro momento, o balanço do palco acrescenta a sensação de perturbação em que se encontra a família Duncan: uma filha que não tem memórias, uma mãe alcoólatra, um noivo virgem, um pai ausente, um filho doente. Aos poucos, o chão começa a falhar e o porão, onde estão os ossos de dinossauro, começa a emergir. A estrutura familiar, como o solo onde a família pisa, começa a degringolar. Excelentemente viabilizada, a proposta faz a produção atingir níveis altíssimos de qualidade estética, sendo esse um de seus maiores méritos. Não menos importantes, a trilha sonora e a iluminação, de Nervoso e de Antônio Guedes respectivamente, são pontuais, certeiras, adequadas e auxiliam positivamente na construção dos melhores momentos da representação. Quem assiste tem a certeza de que está vendo uma rara obra de arte e, por isso, de grande valor.
Não muito diferente pode ser a avaliação das interpretações. Relegado a um (estranho) segundo plano, Todd ganha pouco espaço para se expressar, o mesmo espaço que, desde o texto, tem Tommy. Álamo Facó (o Filho) e Felipe Abib (o Noivo), dentro do que lhes foi dado de chances de mostrar o seu trabalho, aproveitam o disponível e garantem uma discreta, mas importante participação. Mariana Lima, sem dúvida, é uma das melhores e maiores participações de Pterodátilos. Beneficiada por Silver, mas também por Hirsch, a atriz aproveita-se da situação cambaleante de sua personagem alcoolizada (Grace, a mãe) e providencia à cena e aos seus pares os momentos mais fortes de toda a narrativa. Com Nanini, Lima brilha radiante, sobretudo, nos momentos iniciais da peça em que a comicidade tem mais espaço para acontecer.
Alvo de muitas críticas, a reação da plateia, que chega a gargalhar em alguns momentos, pode ser negativamente criticada por quem esteve sedento por mais tempo livre para a abstração do texto. Trata-se de um engano, já que é absolutamente necessário que a primeira parte do espetáculo seja contada em meio a muitos risos. Usando uma metáfora, chamo a atenção para o fato de que Silver e Hirsch necessitam que uma “casa” seja construída no início para, a seguir, ser destruída. Em outras palavras, quem ri no início do espetáculo, sofrerá mais facilmente os beliscões no fim dele. Quem gargalha dos personagens antes perceberá depois que, na verdade, gargalhava de si mesmo.
O ponto fundamental e decepcionante desta montagem é a responsabilidade dada a Marco Nanini na produção. Já com cabelos brancos, um senhor usando um vestido de noiva chama a atenção e se destaca até mesmo num incrível cenário de Daniela Thomas, numa adequada luz de Antônio Guedes e com quem quer que esteja ao seu lado bem trabalhando. É impossível dizer que Marco Nanini não é um excelente ator e seria mentiroso apontar algum aspecto negativo de seu trabalho em Pterodátilos. O problema é da produção que, ao permitir que ele interpretasse esses dois personagens, modificasse o ponto de vista tradicional do texto, desequilibrando, assim, a obra, e fazendo com que tudo e todos parecessem servir negativamente para a indução do foco para Nanini. Uma vez que Emma e Arthur são tão bons personagens como a Mãe e o Noivo na dramaturgia, a concepção viabilizada leva a peça a descarrilhar, embora não chegue a despencar porque, mais uma vez, Marco Nanini é, de fato, um grande ator e está ao lado de excelentes profissionais tanto no palco, como na ficha técnica. É preciso que se diga, porém, que a produção perdeu a oportunidade preciosa de figurar entre os melhores espetáculos do 18º Porto Alegre em Cena quando optou por carregar “as tintas” das cenas de Emma e de Arthur e o desenvolvimento de seus conflitos menores, esses quase totalmente cômicos, isto é, próprios apenas da primeira parte de Pterodátilos.
Quando se fala em signos teatrais, na verdade, se fala em signos tornados teatrais. O teatro utiliza, para a sua viabilização, elementos advindos de diversos sistemas culturais que, a priori, não são seus. A importância da escolha dos atores e de sua distribuição nos papeis, considerando o fato de que os atores também são signos tornados teatrais postos a serviço da produção, fica evidente na análise desse espetáculo de Felipe Hirsch. Faz, por isso, pensar e, não tanto quanto se esperava, aplaudir.
* Rodrigo Monteiro é crítico teatral

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