quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Out of context- for Pina por Cibele Sastre

Minha reverência à irreverente reverência!*
A Cia C de la B é bem assim. Provoca, irrita, cutuca, atiça e desarma. Out of context nos faz passear por diferentes sensações e emoções, com e sem contexto. Não importa, os elementos que o coreógrafo Alain Platel governa na composição das narrativas corporais podem ser considerados parte de um repertório tradicional de procedimentos de dança contemporânea, e podem não ter qualquer referência direta à homenageada Pina, mas dialogam diretamente com nosso corpo sociopolítico cultural – tema principal em suas obras – e com nossos sofrimentos, que para ele é onde nos igualamos uns aos outros. Assisti ao espetáculo de terça feira e a parte da conversa de quarta e soube que nos outros dias haveria uma interferência dos alunos da oficina, o que possivelmente acrescentaria novas provocações à minha experiência estética.
Nothing compares to you, diz a canção final numa versão tocante e delicada de Jimmy Scott, enquanto os bailarinos se vestem saindo de cena sem solenidade mas acenando o fim que se aproxima. Não há chance de assistir à Cia C de la B com a intenção de compará-la ao grande amor de artistas de dança e teatro locais. Pina Bausch há muito tempo é a matéria lançada no meio do lago que propaga ondas que se transformam até a margem ou tantas outras transformações rizomáticas. Alain Platel, psicólogo e pedagogo, há muito tempo é o marginal da dança belga que faz da irreverência um lugar comum. Ver Out of context no mesmo ano em que assistimos a companhia de Pina dançar sua obra inacabada abrindo esse festival e Tadashi Endo fazendo a sua homenagem cheia de citações diretas é um privilégio, um modo de degustar os sabores espalhados pelo mito.
Mas que fique claro, Out of context- for Pina não é sobre Pina. Ela simplesmente paira como influência maior numa irreverente reverência. Para além d'Ela, Out of context mostra o frescor com que os jovens, maravilhosos e bizarros bailarinos movem as propostas tradicionais da dança contemporânea, ressignificando todos os procedimentos de forma muito provocativa e bem humorada, provando que dança contemporânea não é apenas um contorcer-se sofrido composto de “movimentos involuntários” desagradáveis ao olhar e sem qualquer narrativa. [a saber, da 'tradição contemporânea': o entrar em cena despir-se e apresentar o sujeito corpo sociopolítico cultural como “o material da dança”, o movimento mínimo, a integração da voz ao movimento de dança, o engate entre corpos orientado por explorações de contato corporal que desenham formas bizarras, chamar os bailarinos pelo nome próprio, o pop/clubber, a exploração “adulta” dos movimentos da criança (para as crianças de ontem hoje e amanhã), além da exploração virtuosa de coordenações bizarras/assimétricas entre partes do corpo].
Pleno de possíveis associações, Out of context põe contexto no que se costuma chamar de dança contemporânea. E Platel, em conversa com seu público, mostra e ilustra claramente temas e motivações para a tessitura coreográfica, que nesse caso, inclui imagens de um filme médico dos anos vinte sobre a histeria. Diferente de outros trabalhos gerados sobre esse tema, a falta de uma motivação musical direta gerou uma trilha entretecida de voz, tecnologia e as sempre presentes referências populares, incluindo uma Ave Maria. Em meio a abstrações de som e movimento, Platel nos arrebata com o lugar comum em canções e orações quase sempre em contraponto com o tema de fundo. Arrepios e curiosidade: de onde vem esse som? É ele mesmo quem canta? Qualquer maneira de enganar vale a pena...
Também podemos ver como referência um trio A no início do espetáculo, sem nudez ou bandeira como propôs Yvonne Reiner, com essa atitude de entrar em cena da plateia, despir-se (aqui não completamente) e enrolar-se num pano, que com Platel ganha ares mais performáticos do que performativos, mas aproxima Estados Unidos e Europa, influências fundamentais em Pina. Platel vai introduzindo pinos/marcos/citações por onde nossas associações passeiam livremente, com e sem contexto, deixando-nos gozar do gozo dos bailarinos com suas maravilhosas singularidades enfatizadas em solos e duos. Humor, tristeza e ironia brincam de mãos dadas quando o espelho faz a autoestima melhorar a cada dia, quando se torna “difícil ser humilde quando se é perfeito em tudo”(texto de um bailarino), quando isolamento e exibicionismo, que geram deliciosas gargalhadas, se tornam a forma de comunicação. “A ironia ajuda a digerir assuntos duros”, nos diz o coreógrafo que considera triste um dos momentos mais cômicos dessa obra. Diferente de outras produções em que Platel faz da mistura de bailarinos, atores, profissionais e amadores a política do espetáculo, esse trabalho justifica o treinamento e um impressionante virtuosismo para se chegar no êxtase, na simplicidade e na partilha do sofrimento. Ave Platel, cheio de des graça, Pina está conosco. Bendito sois vós entre os coreógrafos, bendito é o fruto da vossa demência sã, a dança.
* Cibele Sastre é bailarina e professora de Dança

2 comentários:

Rodrigo Monteiro disse...

Que lindo, lindo, lindo texto!!!!

Taidje Gut disse...

Amei o texto, fez lembrar o que eu senti durante o espetáculo ;)