quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Histórias de amor líquido por Guilherme Nervo

Relações escorregadias*

A mesma equipe de Um navio no espaço ou Ana Cristina César nos apresenta a peça Histórias de amor líquido, cuidadosamente dirigida por Paulo José e inspirada na obra Amor Líquido - sobre a fragilidade dos laços humanos, do sociólogo alemão Zygmund Baumann. É justamente sobre isso que o texto de Walter Daguerre fala,o caráter líquido das relações humanas. A era da tecnologia faz com que cada vez mais nos relacionemos de forma escorregadia, superficial. Não é um líquido que flui tranquilo e profundamente, mas que margeia a situação e apresenta um curso atravancado. A peça explora nossa conduta ao construir relações instáveis, capazes de se desmanchar a qualquer momento. A derramar como água que goteja ou jorra.
Ao mesmo tempo em que a peça questiona essa avalanche de mídias, a dependência e o abuso tecnológico, utiliza-se delas. Não há uma cena sem projeção, os cenários hiperrealistas são criados a partir de projetores de alta qualidade que compõem as imagens. Paulo José recorreu às espetaculares projeções de Bob Wilson para tanto. A ideia original era montar uma peça seca, centrada no trabalho do ator, utilizando os meios mais elementares, entretanto como a peça falava dessas tecnologias, pareceu coerente explorá-las. A iluminação da peça não trabalhou a favor da projeção dos cenários, fez com que eles perdessem em nitidez.
Cinco atores interpretam três narrativas contadas simultaneamente. O que significa que o elenco deverá interpretar mais que um personagem e passar de um para o outro constantemente. Somando a essa situação o tema da peça – laços humanos –, o espectador pode ter uma ideia do desafio que deve ter sido trabalhar em família. Falo do parentesco entre o diretor e as atrizes Ana Kutner e Bel Kutner, pai e filhas. Somos um complexo integrado, não é fácil separar sentimentos afetivos da vida profissional. Mas essa família e o restante do elenco conseguem vencer essa barreira e apresentar uma comédia inteligente e divertida.
Rua sem saída é o nome da primeira história, composta por um guarda noturno e uma mulher perturbada. Ela persiste em devolver um lenço limpo para o guarda, mas possui uma doença que faz com que sangue - e aqui a figura líquida - derrame de seu nariz. A segunda história chama-se A corretora, composta por uma mulher decidida a passar sua vida contabilizando o mundo e ajudando os clientes a saírem sempre lucrando. A terceira e última história chama-se A casa da ponte, composta por um casal de namorados que entra em conflito ao passar uma noite sem aparelhos eletrônicos. Como se vê, o texto é simples, são situações cotidianas. A única história que parece estar desconectada das outras é a primeira, na qual se explora o silêncio da noite sem bons resultados, a peça perde muito em dinâmica. Por mais que a direção seja excelente.
Histórias de amor líquido apresenta uma estrutura irregular, tem momentos bons e ruins. Às vezes parece que estamos assistindo a uma telenovela, tamanha a semelhança com a linguagem televisiva. Recurso proposital ou não, machuca o corpo do espetáculo. O ponto mais brilhante é a atuação de Bel Kutner, ela apropria-se da personagem da corretora com entusiasmo e exatidão. Caminha como quem está sempre em cima de uma passarela, fala articulado e com glamour, vestindo roupas lustrosas. A atriz é muito natural ao apresentar a lógica de uma mulher capaz de vender a alma ao diabo para conseguir o que quer, ela representa o poder de enganar que a mídia sustenta e a crise do capitalismo. Uma mulher com uma filosofia insana, de que deslocamento é perda, hoje em dia podemos estar em qualquer lugar do mundo virtualmente. Não podia ser diferente, ela termina sozinha e cantando uma canção ridícula no karaokê.
Na terceira história vemos um casal em decomposição. O acordo de manterem uma relação aberta parecia ser muito eficaz. Até o momento em que eles começam a detalhar suas experiências fora do namoro, a causar ciúme e desconforto, até que ela revela a gravidez e ele se posiciona da forma mais egoísta possível. Começa a ouvir música nos fones de ouvido. Não quer conversar, esclarecer sentimentos e atitudes. Quer as coisas anestesiadas, quer o conforto do controle absoluto.
Considerando essas três histórias como um todo, podemos identificar que estamos em ruas sem saídas. A casa possui uma ponte que não dá em lugar nenhum.Existem montanhas separando os indivíduos. As relações afetivas são disformes, nebulosas e incertas. A velocidade da informação do mundo globalizado e a mudança de comportamento são fatos. Tudo se contabiliza pela situação monetária. E o capital nos destrói.
* Guilherme Nervo é estudante de Teatro no Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Um comentário:

carina sehn disse...

Eu não vi este espetáculo porque tinha visto Ana C e ficado apavorada com o que o Paulo José vem fazendo...Ana C é minha poeta favorita e na peça os seus textos foram achatados numa tentativa de deixá-la mais acessível, mais clownesca? Um Horror! Saí chocada do teatro! E agora com Bauman preferi passar longe da montagem! Fico triste em ver um ator brilhante como o Paulo José tão equivocado em termos de cena teatral!