segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Estrella Morente por Ana Cláudia Munari

¡Wa-llah!*

Assisti ao show de Estrella Morente no Bourbon Country no domingo, no último dia do Porto Alegre em Cena. Maravilloso! Saí de lá naquele estado catártico de quem tem um encontro com a arte, com todos os sentidos acionados e pensando na beleza das coisas. Eu nunca tinha assistido a um show de flamenco naquele estilo, e fiquei refletindo sobre suas origens, os intérpretes, os instrumentos, enfim, cheia de perguntas para fazer ao Google quando chegasse em casa. Havia em mim a sensação de que presenciara algo mais puro do que aquilo que se costuma ver da cultura espanhola nos shows para turistas e na televisão, pela muito perceptível influência árabe no canto e na interjeição de estímulo “wa-llah”, além da forma quase ritualística do início do espetáculo e do uso daquela caixa de madeira, cujo nome só lembrei depois: cajón. Enquanto eu pensava em origem e raízes do flamenco, alguém me disse que se tratava de algo novo, moderno, e que os violeiros tinham influência do rock.
Fiquei surpresa com a minha interpretação tão diferente, mas essa é justamente uma característica da arte: entregar os sentidos para o receptor. Apesar disso, certamente aquele estilo apresentava marcas e influências distinguíveis, que eu desconhecia. No dia seguinte, vi no Facebook o comentário do Hique Gomez (ator, cantor e pai da Clarah Averbuck), dizendo que Estrella magnetizou a plateia, e foi mesmo o que ela fez, chegando ao ápice com sua homenagem ao Brasil, ao final, cantando e dançando um samba e trazendo sambistas e seus pandeiros para o palco – ela é fã de Caetano, Bethânia e Elis Regina. Mas foi a forma como Hique conceituou a música apresentada pelo grupo que me chamou a atenção: “Flamenco puro: passado e futuro”, eis aí uma resposta para o conflito sobre o gênero interpretado por Estrella Morente e seus companheiros de palco.
No website da estrela Estrella, podemos confirmar uma importantíssima informação: ela é filha, sobrinha, neta de cantores, bailarinos, maestros, instrumentistas de flamenco. Ou seja: em sua própria origem, está a cultura do flamenco. Certamente isso tem relação com a primeira parte da expressão usada por Hique: “passado”. Desse passado, Estrella trouxe aquele canto original, que parece um lamento – a melancolia, a soléa, que, como disse Estrella em entrevista, tem influência do fado. Tradicionalmente, o flamenco era isto, o canto andaluz, e foi daí minha sensação de viagem no tempo, para algo primitivo e essencial, que toca, até sem palavras, a alma da gente. Palmas e guitarras vemos muito nas representações contemporâneas, que incluem as castanholas, mas isso também não é algo que possa ser chamado “novo”. Já o conceito de moderno, como foi qualificado o espetáculo, pode definir aquilo que tenha surgido da modernidade, que remonta ao período entre os séculos XVI e XVIII. Assim, o próprio flamenco, como mistura cultural, é moderno!
O fato de se tornar um espetáculo, e não uma reunião de membros de uma comunidade espanhola, por si só já configura essa desconstrução de um gênero “original”, e assim toda uma grande parte da cultura moderna, mesmo as ditas nacionais ou identitárias, perderia seu sentido de pureza ilusória. A quebra da tradição talvez esteja mesmo no fato de que é impossível ao artista manter-se apartado do mundo que o cerca, insensível ao que o toca diante da criação, isento de sua bagagem. Os jovens membros do grupo, incluindo a cantora de 32 anos, trazem consigo o vigor que o próprio flamenco admite seja incorporado. Sejam as tecnologias que permitem a configuração do som ou das luzes – o novo –, até as novas práticas instrumentais, talvez herdadas de outros gêneros e tendências, na linha fragmentada da vida – o futuro –, tudo serve, ali, para a celebração da tradição espanhola. Se os jovens guitarristas flamencos dedilham sob a influência do rock, ou se o folclore brasileiro é matéria de inspiração, nada disso é estranho ao que fizeram os flamencos do passado, afinando as cordas dos violões com a imaginação perpassando por todos os sons do mundo, aqueles que conquistavam territórios, atravessavam fronteiras, criavam outras nações.
O que eu ouvi foi a originalidade do flamenco, distinguível no canto, nas guitarras, nas palmas, no baile: passado e futuro, tradição e modernidade, herança e renovação. E talento, essencial para a arte. Mais: a alegria do pertencimento a uma cultura que se ama, respeita e cultiva, que é o elemento contagiante, a chama que desperta o reconhecimento do público como algo vivo, humano, essencial. Como a cultura...¡Olé!
* Ana Cláudia Munari é Doutora em Letras

Nenhum comentário: