quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Dueto para um por Tatiana Cardoso

Dueto para um*
A montagem Dueto para um apresenta uma interpretação sensível e fiel às palavras do dramaturgo inglês Tom Tempinski. Durante toda encenação fica claro que o objetivo principal da montagem é servir integralmente ao texto, tentando valorizar amplamente a palavra e a emoção contida no desenvolvimento dos personagens.
Stephanie Abrahams, representada pela ótima atriz Bel Kovarick, sofre de esclerose múltipla, uma doença degenerativa e sem cura, que a faz abandonar a carreira bem sucedida de violinista. O fio condutor da trama são as sessões terapêuticas da violinista com seu psiquiatra, o Dr. Feldman, representado por Marco Suchara. A principal reflexão que o texto propõe é relativa às limitações, ao modo como o ser humano pode encarar uma doença destas, que degenera o físico até impedir a realização de seus planos e suas funções mais básicas. O caso de Stephanie, sendo ela a musicista que é, sua arte é mais que uma simples profissão ou ocupação: a música é o que dá o próprio sentido para sua vida, ou pelo menos, para querer manter-se viva. E se a fatalidade de uma doença a impede de exercer sua vida na música, então qual seria o sentido em viver?
A encenação conta com recursos sintéticos: Uma luz bem desenhada pela fumaça tem às vezes a função de mostrar a realidade interior do consultório, reforçando a relação de intimidade e isolamento de paciente e terapeuta, do resto do mundo. Em outros momentos, a luz e a fumaça criam a sensação de que os dois atores quase pairam no ar, evocando um não espaço, onde a passagem do tempo é ampliada, como nos momentos onde há uma valorização da atmosfera nas recordações e reflexões da violinista.
Dois praticáveis de madeira ligados, sendo o do centro, uma plataforma circular que gira eventualmente durante a ação. É neste tablado circular onde acontece toda a movimentação – que é mínima. O recurso do tablado móvel é usado às vezes girando tão lentamente que é quase imperceptível, o que causa um efeito interessante, pois ao nos atermos ao diálogo quase não percebemos que médico e paciente se movem, mesmo sentados, parados em suas cadeiras, permitindo que sutilmente possamos perceber ângulos diferentes dos atores, individualmente ou em relação um com o outro. Isso nos evoca diferentes significados na recepção ao texto. Colocando ora em evidência as costas do terapeuta, a plateia imediatamente se coloca na posição dele, vendo o rosto e ouvindo as palavras da paciente e em outros momentos, na posição dela, que nos faz ver o olhar atento e discreto do terapeuta. Este recurso, porém, coloca algumas vezes os dois atores numa posição não favorável, impedindo que se veja o ator que acaba ficando atrás, provocando um certo incômodo no público, pois o diálogo continua normalmente.
Dueto para um é uma montagem precisa, com atores impecáveis, com uma direção sensível, mas ainda assim me pergunto, por que não foi bom pra mim? Porque um bom cenário, uma ótima atuação, uma direção precisa, com bela luz e música, com atmosferas instauradas, não foram suficientes para me tocar?
Acho que o que me distanciou da peça foi sua previsibilidade. Tudo convergia muito, até demais, ao texto. E o texto, com exceção de algumas respostas cortantes da paciente, que faziam rir pela sua crueza e clareza da sua situação, era previsível. O texto é a atração principal, e isso é proposital, eu sei. Tenho certeza que para aqueles que apreciam atores dizendo bem um texto e se interessam pela temática, vão se emocionar. Mas me senti um pouco excluída como espectadora: se eles dizem aquele texto tal e qual está escrito, o que sobra pra mim, a não ser só escutar?
Tentarei me explicar: Um momento tocante é quando, depois de várias sessões de terapia, quando a doença se torna cada vez pior, imobilizando os membros da violinista, o tablado traz para frente a atriz, sentada na sua cadeira de rodas. Ali ela aparece com seu corpo em um estado diferente, algo de novo, apresentando algo que me faz imaginar além do texto. É quando ela confessa ao médico: “Ontem eu dei meu violino!” Nesse momento seu corpo treme em pequenas convulsões, seu corpo retorcido faz milhões de pequenas danças de tensões que chegam à máscara, que retrata o horror de ser amputada do seu instrumento de trabalho, da dor que é ser alijada da satisfação, da transcendência que leva quem porta a arte, a música, a vida.
Os olhos da atriz pulsam, seu corpo vibra e me faz pensar: que bom, agora a atriz não está apenas representando, está vivendo nela, seu papel. Naquele momento que a ação extravasa as palavras, que revela as veias, os ossos contorcidos, os olhos flamejantes, quando o sangue da atriz se mistura ao sangue invisível e etéreo do personagem, não existe mais a representação do papel, mas a organicidade da mulher atriz, viva, que me faz sentir, na mesma onda, no mesmo fio. Como espectadora, minhas veias, minha alma, músculos, também estavam pedindo para serem acordados. Não somente minha mente. Falo aqui de sentidos, de ações cheias de energia que levam a atuação além da racionalidade e intenção bem colocada das palavras.
Senti falta que a peça fosse maior que o texto, que pudesse seguir mais livre, mais independente, pra que eu sentisse aquela mulher atriz, se conectando com eu expectadora, ou mais, que aquela vida da mise en scène, acordasse minhas entranhas quietas de espectadora, acionando não apenas os ouvidos, olhos e mente. Naquele momento e alguns outros fugazes, senti os fios quentes me unirem à peça. Aqueles rompantes altos da música em determinados momentos de revelação da personagem apesar de terem intenção clara de acentuar determinada emoção, não chegam a me provocar isso.
Preciso dizer que assisti a uma montagem sem erros, mas também, sem surpresas. Já nos primeiros momentos percebi que meu papel era escutar, e isso já me incomodou um pouco. Já entendi que eu deveria ter calma, ser paciente pra saber como aquela história terminaria. Quase como se eu fosse ler um livro.
O texto, na verdade, não me seduz, pois mostra aquele velho discurso analítico que conhecemos muito bem: a filha que acaba reproduzindo o comportamento da mãe, que tenta alcançar a aprovação do pai, que quer ter filhos – no caso aqui, alunos de violino - para realizar-se através deles ou então para manter um casamento. A tentativa do médico de abrir as feridas da mulher para que ela tome consciência de seus sentimentos mais sombrios, para que assim, consciente de seus sentimentos, tome uma atitude positiva mesmo diante da catástrofe de uma doença sem cura. A mulher dura, irônica, que esconde sua fragilidade, o terapeuta que quer fazer seu trabalho, mas que também é humano além de psiquiatra e que pode se compadecer com sua paciente, etc, etc... Queria que a complexidade daquele drama, mais que me fazer ser uma ouvinte consciente, me arrebatasse como testemunha, para que pelo menos, no final, eu não saísse indiferente ao seu desfecho.
* Tatiana Cardoso é diretora do Teatro Torto, atriz e professora do curso de Teatro: Licenciatura da UERGS.

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