quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Dois perdidos numa noite suja por Manuella P. Goulart e Guilherme Nervo

Desejo de mudança*
Dois perdidos numa noite suja, construído a partir da obra de Plínio Marcos (1966), mostra a situação de dois sujeitos que trabalham como carregadores de caminhão numa feira popular. Paco (Renaldo Taunay) vive tocando gaita de boca, já que a sua flauta foi roubada, e também passa o seu tempo a implicar com Tonho (Igor Kovalewski), que não vê a hora de se tornar alguém na vida, pois ele estudou, é alfabetizado. Ao entrarem em cena, é possível que o espectador tenha a sensação de que, ao longo de 85 minutos, assistirá a uma montagem congelada e lacunar, como geralmente são as montagens baseadas em textos de Beckett. A expressão misteriosa dos atores, o não-diálogo inicial e os seus aspectos físicos bem distintos, assemelham-se à trama de Estragon e Vladimir, em Esperando Godot. Porém, essa imagem vai se diluindo.
Se aqui eles também esperam, não se trata de uma espera estática, e sim dinâmica. A velocidade com que a dupla troca palavras traduz a ânsia de largar uma vida medíocre. Existe um objetivo concreto que não se resume ao ato de esperar. Essa aceleração da fala, utilizada em alguns momentos, é brilhante, parece que estamos assistindo a uma partida decisiva de ping-pong. O texto de Plínio Marcos cresce em nuance e potência ao ser dito pelos atores com muita verdade, o que nos leva a pensar que o texto foi esmiuçado com atenção e criatividade, em conjunto com uma direção (André Garolli) que só contribuiu.
Rapidamente deverá nos evocar uma pergunta: se as condições de trabalho são tão humilhantes e Tonho até mesmo está sendo ameaçado de ser espancado pelo “negrão” do vilarejo, por que não vão embora? Por que Tonho aguenta ser chamado de “boneca do negrão” e ser diariamente envenenado por Paco? Talvez, porque ambos possuam uma relação de dependência. Talvez, porque estejam escravizados. Tonho quer ir embora, mas precisa conseguir um sapato novo para ter um emprego melhor. E a solução está com Paco, que possui o objeto de desejo, mas não o cede por considerá-lo símbolo de poder. A ligação não aparece apenas entre eles, mas também com o ambiente. Como se existisse um determinado gozo em prolongar a situação, um desejo perverso de sofrimento que colide com o desejo de mudança. Mas nada se concretiza, pois os personagens não conseguem agir para que isso ocorra.
Quando parecia que estaríamos voltando a “esperar Godot”, Tonho faz uma proposta a Paco que dará uma grande reviravolta na vida de ambos. Ele pretende assaltar um casal de namorados assustando-os com sua arma de fogo sem balas. Tonho expõe o tamanho de seu coração diversas vezes, é um homem generoso, sincero, não quer machucar ninguém. Paco é o perfeito contraponto: já se imagina dando um pau no homem e abusando a namorada. É nesse momento que o público pode concretizar o que na realidade viu desde o princípio: atores em sintonia e interpretações que prendem o espectador. Afinal, é esse o foco da peça, pois o cenário é simples: dois caixotes, uma bacia com água e uma caneca. Sabemos que existe ação fora desse cenário pelos relatos dos personagens, mas o lugar que acompanhamos é o quarto de pensão dividido pelos sujeitos. Os objetos cênicos demonstram bem a situação de pobreza em que os eles vivem e o palco vazio contraria a cenografia proposta por Plínio Marcos. O diretor e a companhia carioca Triptal de Teatro foram muito felizes ao desnudarem esse texto, que já foi tão trabalhado.
Difícil destacar apenas uma cena do esqueleto bem estruturado da peça. Mas existe uma cena arrebatadora em sua poesia: quando Tonho oferece gentilmente um cigarro à Paco e eles quase se beijam para acender os cigarros. Permanecem um tempo precioso em suspensão, com contato visual intenso, esperando o momento em que os cigarros acendam. O elo é estabelecido, entretanto, por mais que o cigarro seja prazeroso, queima o próprio corpo até reduzir-se às cinzas. Há outros momentos, como esse, em que um dos homens congela em uma foto enquanto o outro continua a dizer o texto. O que termina por nos mostrar uma interessante linguagem, que não é a do naturalismo.
Os diálogos são compostos de palavras que caracterizam esses personagens. Paco é extremamente vulgar em seus gestos, tem uma postura de malandro, usa palavras baixas, mas que possuem beleza em razão do trabalho textual eficiente, que só peca ao antecipar reações. Isso ficou claro na atuação de Renaldo Taunay, quebrando a atmosfera de veracidade. Tonho é mais discreto no que diz, ele ainda tem família, é sensível e solidário. Sua expressão revela toda a dor que sente por estar ali, com os sapatos rotos, o corpo sujo e a alma machucada.
Dois perdidos numa noite suja consegue cumprir o que todo espetáculo deveria ter como meta: atingir o público violentamente a partir de saborosos momentos de reflexão e risadas derivadas da notável presença cênica e conexão entre o elenco.
* Manuella P. Goulart e Guilherme Nervo são estudantes de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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