sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Cordel do amor sem fim por Guilherme Nervo

Teatro feito à mão*
O que olhar primeiro no exuberante cenário de Cordel do amor sem fim? Qual som escutar com mais atenção? Por qual cor se deixar influenciar? A qual personagem dedicar mais atenção? Essas perguntas começaram a borbulhar em mim quando entrei na Sala Álvaro Moreyra. Logo entendi o porquê da escolha da sala ao invés do Teatro Renascença, a aproximação entre ator e público é fundamental, trata-se de um teatro de vivência. Não por acaso o grupo de Recife chama-se O Poste: Soluções Luminosas, a iluminação conversa com todos os outros elementos, formando e destruindo atmosferas como em um passe de mágica. É como se o grupo houvesse adicionado três personagens ao texto de Claudia Barral: a luz, a sonoplastia e a percussão. Elas estão suficientemente presentes e entrelaçadas com o enredo a ponto de adquirirem um caráter de “personagem”. As luminárias com envolto de palha em formato circular estão penduradas no fundo do palco, cobertas por redes de pesca. Ou são teias de aranha? Talvez apenas fumaça, tecido ou ilusão de ótica. De uma forma ou de outra, o campo de significação é expandido e cada um faz a sua viagem. Isso é riqueza.
Às margens do rio São Francisco, no sertão baiano, moram três irmãs completamente diferentes - a velha grosseira e encurvada Madalena, a instigante e colorida Carminha e a sonhadora aérea Tereza, a mais jovem. José é o noivo de Tereza e traz consigo um amor agressivo por ela, revelando uma personalidade animalesca. A primeira imagem da peça é formada pelos quatro tocando um tipo de instrumento e repetindo um movimento próprio ao personagem. A sensação é que eles estão debaixo do mar: a luz geral é azulada e conchas luminosas formam um caminho no solo. A corneta de som grave e arrepiante, os chocalhos frenéticos, a batida cheia de suspense do tambor e tantos outros instrumentos artesanais capazes de imitar ruídos da natureza e do homem, parecem nunca sair de cena, como se os quatro personagens trouxessem consigo um ritmo. Ritmo que ao decorrer da peça sofre algumas alterações, agita, acalma, explode, emudece. Funciona como um fragmento de alma.
Cada personagem tem um tipo bem definido de falar, andar e se posicionar. O que fica claro quando eles distanciam-se do personagem para narrar algum momento da peça. A linguagem de atuação escolhida é um dos elementos mais gritantes, é como se assistíssemos a um teatro de rua introduzido no palco. As feições são exageradas, a maquiagem transborda no rosto, o texto é dito de forma arrastada e abusando da articulação, tudo é propositalmente grande, colorido e voraz. No princípio essa encenação me incomodou, não consegui olhar com generosidade para a caricatura do ser humano como uma tipificação da commedia dell’arte. Depois, essa sensação foi diminuindo, me permiti um mergulho profundo nesse universo rico e poético, de uma cultura tão singular. Não me questiono quanto à explícita competência do trabalho de atuação, os personagens apresentam pinceladas bem trabalhadas, porém o nu de Tereza parece agir com um único objetivo: alcançar o sucesso da forma. E alcança, pois a cena em que ela se esgueira sobre as velas com os seios nus, dizendo: E o terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão; e a outra, em que ela caminha sobre gelo seco e luz verde, coberta apenas por uma rede de pesca; são cenas estonteantes, repletas de onirismo. Entretanto precisam desse apelo? A beleza física e a sexualidade de Tereza foram bem exploradas com o vestido curto e com seus trejeitos, o nu sublinha isso de maneira excessiva e destoa com agudeza do restante da peça.
Se Deus levantou o céu com uma frase, com uma frase o céu pode desabar.
E foi essa frase, dita por Tereza, que desabou José. Com muita relutância aceitou esperar o homem que havia atravessado o peito da menina de desejo, o tal Antônio. Semanas e meses passaram, até que quatro anos completaram-se sem a aparição do homem. Para José, todas as prostitutas da cidade tinham a feição de Tereza, ele estava enlouquecido por ela. Enfim esbarrou com Antônio pela cidade, fazendo questão de assassiná-lo em um mato. Tereza espera por tanto tempo seu amor que acaba se transformando em pedra às margens do rio São Francisco.
É possível gargalhar, emocionar-se, ficar vidrado e mesmo achar tudo muito exótico em Cordel do amor sem fim. As canções estão presentes em diversos momentos, além de contar a história, reforçam o universo folclórico do nordeste brasileiro. Inclusive, existe um resgate de cultura, um estudo antropológico. O elenco demonstra performances muito boas, somente a voz de Tereza (Eliz Galvão) parece destoar perante as outras. O músico canta apenas um verso: Mas toda a verdade está nos olhos de Antônio, suficiente para que a plateia volte surpreendida em direção a ele, sua voz é marcante, carrega uma tristeza encantadora.
As soluções cênicas da peça revelam uma criatividade pensada em conjunto: desde à porta que é carregada pelos personagens e capaz de se desmanchar em quatro superfícies, até à utilização de objetos que intensifiquem o nível de tensão ou distensão da cena, explorando sons inusitados, surpreendentemente musicais e ritmados. É uma grande conquista alcançar tamanha carga poética e beleza plástica a partir de recursos simples e artesanais, sem a utilização de máquinas. Por isso considero adequada a expressão “teatro feito à mão”, é delicado e poderoso.
* Guilherme Nervo é estudante de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

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