terça-feira, 20 de setembro de 2011

Blackbird por Julio Conte

Blackbird*
A peça Blackbird do dramaturgo David Harrower vem precedida pela fama do autor escocês. Da jovem geração de dramaturgos, David compõe um obra que prima pela concisão. A encenação é absolutamente sincrônica com o texto e, ao estilo do melhor teatro uruguaio, prima pelo realismo na encenação e no naturalismo das interpretações. Como a peça compõe um festival só posso deduzir que a dramaturgia é para onde se foca o interesse da obra. Um texto é livremente inspirado em fatos reais, onde o abuso sexual perpetuado por Toby Studebaker serviu de inspiração para o autor. Sobre este mote, David Harrower constrói uma narrativa compacta e sintética. Parece que o texto foi esculpido sobre um rocha de granito. É dura e áspera, demora para revelar as nuances, mas por isso mesmo de uma cruel consistência. O ritmo da encenação faz jus ao que de melhor se pode esperar de um teatro realista. Falas entrecortadas, dinâmicas, cresce e esvazia, tensiona e relaxa e nunca dá trégua. Cheia de desenho acústico, as falas favorecem ao espectador, pois mesmo quando perdemos alguns significados das palavras, a musicalidade do texto, a sonoridade e o ritmos nos devolvem para o cerne da trama. O temos em cena é Una, uma mulher de 27 que encontra Ray de 55. Ela o descobriu por uma foto num jornal e imediatamente reconheceu o sujeito que a abusara quando tinha 12 anos. A temática não faz concessões. A verdade de cada um é revelada numa espécie de almoxarifado da empresa que prima pelo isolamento. Ali, naquele ambiente recluso, isolado e intimo a trama se desenrola. As revelações têm um aspecto de rememorações atormentadas do passado que se recusa a passar. Assim a pedra essencial da narrativa vai sendo esculpida e a peça se revela para nós. O clima entre Una e Ray, depois da catarse, retoma o clima sexual. Os estranhos caminhos do desejo. A confusão de linguagem na qual o infante confunde ternura com amor e passa a se culpar por ter sido abusado constituindo o mecanismo conhecido como identificação com o agressor. Aquele que sofre acha que a culpa é dele, pois de outra forma perderia, embora de fato já tenha perdido, os objetos amorosos que deveriam prover a sua subsistência emocional e física. Ray e Una são tomados pelo antigo desejo e, de novo, não sabem o que fazer com ele. Porém aqui temos a grande virada que revela a grandeza do dramaturgo e transforma a encenação para além de um caso clínico. Surge em cena uma enteada de Ray, uma menina, ainda púbere, que veio buscá-lo para ambos voltarem para casa. Neste momento abre-se sobre o granito da narrativa o miasma essencial. Corre sangue na pedra, o granito mostra sua essência. Aquela mesma que nos revela do que somos feitos e infiltra a pedra com desejo e compulsão. Ray, Una e a menina quedam-se assim, frente ao pássaro negro do desejo e não podem mais voltar, nem mentir, nem seguir adiante. Um Sísifo que não redime e a pedra rola colina abaixo para iniciar um novo ciclo.
* Julio Conte é encenador

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