quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Zé Victor Castiel: Um navio no espaço ou Ana Cristina César

Foto: Creative

Uma porta escancarada em 2010

A primeira e terrível sensação que me deu ao ser provocado, pelo querido e competente Rodrigo Monteiro, para conceber um comentário sobre o espetáculo Um navio no espaço ou Ana Cristina César foi indescritível. Lógico que não sou capaz. Não sou crítico. Sou movido à emoção. Nunca pensei em avaliar questões técnicas como luz, direção, atuações, cenários, figurinos e tudo que deve ser analisado/criticado numa peça teatral. Teatro bom, prá mim, é aquele que me leva para dar um passeio no éter, diverte e/ou emociona. Pois, imbuído do melhor espírito de compenetração (quase em concentração pré-cênica), fui ao Teatro CIEE na noite de segunda feira, dia 13. E lhes digo com emoção: valeu muito à pena.

Já no saguão, encontrei diversos colegas e amigos. E me assaltou a primeira grande constatação: isso só é possível no Porto Alegre Em Cena. Que festival, senhoras e senhores! Que evento fantástico! Quando imaginamos que, um dia, teríamos, em nossa cidade, tamanha diversidade de espetáculos de altíssimo nível?
O Em Cena é a organização da cultura. A concretização do lúdico. A personificação do belo. O Em Cena é produzido e conduzido com tal esmero pela equipe para isto designada que chega a dar uma pontinha de orgulho. Acho necessário este introito por dois motivos: primeiro, porque já serve como escusas por algum erro avaliativo que possivelmente cometerei; e segundo, porque elogiar o Em Cena e as pessoas que abnegadamente o realizam é uma obrigação para quem, como eu, ousa trabalhar com arte em Porto Alegre.
Falemos do espetáculo: Um navio no espaço... começa de uma maneira leve. Luzes de plateia ligadas, retardatários ainda procurando suas poltronas e Paulo José, num canto do palco, sentado atrás de uma mesa dessas que temos na biblioteca de casa. Bagunça, livros espalhados, inclusive no chão e um papo calmo, descontraído, sem demonstrar que ali está sendo dada a introdução fundamental de uma história de vida criativa, breve e intensa. Ao explicar que, no canto dos cisnes da extinta TV Tupi, havia um programa, conduzido por Hilton Franco, em que eram ofertadas cadeiras de rodas, dentaduras, bengalas a uma plateia paupérrima, o ator já está informando, mesmo que de forma coloquial, que vem chumbo grosso. Artilharia pesada de emoção e verdade.

O personagem que, no início, é o próprio Paulo José conta que roteirizou um programa para a TV Globo e que teve um parecer demolidor de um tal departamento de análises de roteiros, ou coisa que o valha. As opiniões vinham assinadas por um A.C. César. Instado por auto-defesa ou por indignação profunda (o que não importa muito), o roteirista foi até a sala onde funcionava o tal departamento a procura de A. C. César (Seria Antônio Carlos?). Lá, na verdade, encontrou uma menina de trinta anos, cujo nome era Ana Cristina e que, em que pese a candura do olhar, era a autora das ferozes críticas.

Tempos depois, lendo o jornal, soube que a mesma menina estava lançando um livro de poesias e, não contendo a curiosidade, acorreu à livraria para, provavelmente, ir à forra em ferocidades críticas. Apaixonou-se pelo que leu de tal forma que não descansou enquanto não retornou a sala da TV Globo, agora para tentar estreitar laços com aquela menina que tão boa poeta era. Porta fechada, ficou sabendo que Ana Cristina havia tirado a própria vida.

O ano era 1983 e Ana Cristina César tinha somente 31 anos. Deixou, na verdade, muitos escritos entre poemas, prosas, cartas e um diário pessoal. O suficiente para se montar um lindíssimo espetáculo sobre a vida e a amargura de uma poeta inquieta. Uma poeta que se viu publicada aos tenros 6 anos de idade e que, mais tarde, foi considerada a rainha da poesia de mimeógrafo. A ninfeta da contra-cultura.
O espetáculo se estabelece no momento em que Ana Kutner encarna Ana Cristina. A partir daí, a garra da atriz dá vida e voz a um texto ferino e amargurado. Lúcido. Tresloucado. O cenário, muito inteligente, se utiliza de panos/telas, por onde desfilam ora imagens do personagem, ora poemas escritos, ora projeções disformes, que, ao fim e ao cabo, têm conexão completa com tudo o que está sendo dito.

Paulo José funciona como um narrador. Será um amigo? Será superego? Não importa. Está ali, dando pitacos. Manuseando os livros originais da poeta e a provocando com constatações de influências e estilos da obra sendo desnudada.

Ana Kutner é uma grande intérprete. Transporta o público ao universo de seu personagem. Demonstra de tal forma angústia, inquietude, revolta e, por vezes, resignação, que faz com que embarquemos juntos naquele navio para a Europa.

Na verdade, através da forma proposta pelo diretor (também Paulo José) o que se consubstancia é uma biografia completa de uma poeta a partir de seus próprios escritos. Ordem cronológica perfeita. A arte é uma coisa estranha. Jamais, tenho certeza, Ana Cristina César imaginou que estava, através de sua obra, escrevendo, na verdade, sua própria biografia. Aí entra o total mérito do texto de Maria Helena Kühner em combinação perfeita com a dramaturgia de Walter Daguerre, que, em momento algum, demonstram qualquer forçação de barra em busca de uma coerência cênica. Temos aí, então, um lindo espetáculo. Simples. E sempre é bom lembrar que os melhores são aqueles que atingem a simplicidade.

Ana Kutner é uma excelente atriz. Possui o carisma das atrizes de estirpe e a intensidade das atrizes de verdade. Paulo José é o mestre. Elogiar sua atuação é chover no inundado. Direção ousadamente na medida.
Figurinos da Kika são sempre perfeitos. Iluminação e trilha sonora passam desapercebidos. Não por serem medíocres, longe disso. Quando um Juiz de Futebol passa desapercebido, é porque fez uma arbitragem perfeita. É mais ou menos isto: de tão bem feitos e tão adequados, contribuem de uma maneira tal para a beleza, entendimento e andamento do espetáculo que parecem que nasceram ali, durante a encenação.
Por fim, cabe uma bela constatação sobre "Um navio no espaço ou Ana Cristina César": como é sublime ver um ator septuagenário como Paulo José, um dos maiores amantes da vida que conheço (e com quem privo para minha honra) contar, no teatro, a história de uma vida auto-abrevidada aos 31.

Transpareceu, no entanto, uma certa frustração do ator na constatação de que chegou tarde para conhecer melhor aquela menina-poeta. Fique tranqüilo, Paulo José, o que você fez, magicamente, foi entrar, em 2010, por aquela porta do departamento de análises de roteiros da TV Globo, embora ela parecesse trancada em 1983. Sua missão está cumprida com mestria. Emocionante. Teatro. Poesia.

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Zé Victor Castiel é ator de teatro, cinema e televisão e não é crítico de teatro.

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