sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Tatiana Cardoso: Sonata de otoño



Foto: Guilherme Santos / PMPA

O filme e a peça

O conflito entre mãe e filha é um tema recorrente no cinema, na literatura, no teatro , também, claro, dentro de nossas casas. A mãe ausente, a filha insatisfeita, sentindo-se rejeitada, carente de carinho. O tempo que passa. O dito amor familiar afogando decepções secretas, desilusões profundas, frustrações mutilantes. O tempo que continua passando e o acerto de contas que acaba vindo mais cedo ou mais tarde. Um tema familiar. Um tema universal. Uma tensão universal.

Na versão de Bergman, no filme Sonata de outono, este tema é tratado com uma densidade e intensidade, que tornam nossos piores conflitos familiares em prosaicos. Os diálogos vem favorecidos, não só pela genialidade própria do cineasta, mas pela agilidade daqueles recursos que são inerentes ao cinema, como o close e o feedback, por exemplo. Enquanto Eva (a filha) e Charlotte (a mãe) conversam, seus rostos aparecem em close - o que nos permite chegar muito perto da expressão dos olhos, do rosto e da verdade da emoção das atrizes. O feedback promove um salto mágico numa viagem através do tempo, em que anos são percorridos em um segundo, então, simultaneamente à voz da filha adulta, aparece a imagem da filha criança, no seu vestidinho claro, de laço na cabeça, apaixonada pela mãe, admirando-a distante em silêncio, à espera de um pequeno sinal de afeto, destes sinais que os filhos buscam nos pais para certificarem-se que realmente existem no mundo.

Em uma breve cena do filme, toda gravidade da ferida psicológica da filha se escancara. Entramos num poço escuro, a garganta fecha, as mãos suam. Somos capazes de perceber a dor da menina, assim como, mais tarde, tentaremos entender os motivos da mãe. Nos afeta ver a menina ali apaixonada, frágil, inocente, solitária, aos pés de uma mãe fria, impassível, distante.

Já no teatro, sem o close, nem o feedback – pelo menos sem a agilidade do cinema - contamos com fios invisíveis de tensão. Fios que emanam do corpo, da voz, das ações dos atores, que os une, preenche o espaço, atravessa a quarta parede - existindo ela ou não – até, finalmente, invadir a plateia, enlaçando-nos, espectadores carentes de emoção. Queremos ser tocados, afetados, seduzidos. Queremos ser testemunhas e reagir, enviando à cena, os nossos fios invisíveis de satisfação, de deleite. Na montagem uruguaia, fui envolvida apenas em parte, pelos tais fios invisíveis.

Um piano, uma poltrona e duas cadeiras formam o cenário, emoldurado por um painel de tecido ao fundo, com a imagem dos troncos de um bosque. A encenação é bem cuidada, inspirada pela beleza plástica do filme de Bergman, com intenção de requinte, principalmente no figurino. A luz divide o palco em dois ambientes, um central, da sala da casa, onde acontece o confronto mãe e filhas e um periférico, um grande corredor quadrado desenhado pela luz. Esse detalhe dá agilidade à encenação, nas mudanças de lugar da história e nas entradas e saídas dos personagens. Ao centro, as cenas principais do conflito, ao redor do piano – que é tocado pelas atrizes em uma das cenas - e na periferia, as recordações e os solilóquios das personagens.

As três atrizes estão imersas na atmosfera de abandono mútuo de suas personagens, mas devo dizer que os fios da atriz que faz a filha, Margarita Musto foram os que mais me tocaram, devido à sua inteireza e verdade. O modo que ela carrega a dor de Eva era visível na sua composição corpórea - vide seu “abraço sem mãos” - na sua forma receptiva de escutar, na sua voz grave e profunda e principalmente na composição emocional, apesar de às vezes me parecer doce demais para a personagem, do paradoxo de amor e ódio por sua mãe.

Foi uma boa experiência, ter assistido à Sonata de otoño, mesmo que as profundas dores que carregam mãe e filhas, sempre tentando manter uma aparência de constância, equilíbrio e austeridade, tenham parecido bem menores que as do filme.

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Tatiana Cardoso:
Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS. Professora da UERGS/FUNDARTE e da UFRGS. Atriz do grupo internacional Vindenes Bro (Dinamarca). Diretora do Teatro Torto, em cartaz nesta edição do festival, com o espetáculo As bufa.

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