quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Paulo Salvetti: Corte Seco

Foto: Ivo Gonçalves

Ficcionalização / Não-ficcionalização do acaso

Houve um tempo em que o teatro era movido por tentativas de recriação da realidade. Nesse contexto, a relação entre o espetáculo e o público formalizava-se pela lógica da verossimilhança, na qual, de uma parte, as ações e as cenas eram construídas dentro da maior proximidade possível com o real e, da outra, a recepção era configurada por uma disposição em acreditar na situação presenciada. Obviamente que essas perspectivas ainda fazem parte do teatro, mas com dosagens menos intensas de ambas as partes. O espetáculo, por exemplo, vai se utilizando, ao longo do tempo, cada vez mais dos artifícios que o fazem teatro e não realidade. Já o púbico, para quem se faz o teatro, também vai, concomitantemente, reconhecendo no espetáculo não só as representações da realidade, mas os próprios artifícios que as compõem, como a luz e a trilha sonora. A própria história da preparação do ator pós-Stanislavski (e, talvez, incluindo ele próprio ao tratar das ações físicas) vai seguindo um caminho que visa um ator fora do estado cotidiano, em busca de uma colocação cênica que, em sua natureza, retira o corpo do ator do real e o coloca em um estado de atenção que, ao mesmo tempo, chama a atenção do outro (presença/presente?).

Mas toda essa lógica (junto de outras) pela qual costumamos entender o teatro parece ser colocada em xeque no ótimo espetáculo Corte seco, dirigido por Cristiane Jathay. Desde que entramos no teatro, as fronteiras entre o que é e o que não é teatro estão contaminadas. Os atores passeiam pela plateia ao mesmo tempo em que o público entra, criando uma mistura entre os grupos (daqueles que fazem e daqueles que assistem) o que nos coloca, inicialmente em status semelhantes.

Christiane Jathay está em cena, ao lado da iluminadora e do sonoplasta. Ela é a regente da cena, assim como ambicionava Craig, ou como fez Kantor em seus espetáculos. E é sob seu comando (em cinco tempos) que a peça irá começar, embora já tivesse começado bem antes. A partir de então, segue-se o espetáculo por meio de um grupo de cenas que funcionam como peças de um jogo, o qual tem suas regras determinadas pela regente. O palco se transforma em um tabuleiro e todos que ali parecem estar jogando. Até mesmo as cadeiras de diversos tipos que constituem as cenas têm, cada uma delas, ordens para quem a utiliza: narrar, descrever, interiorizar, etc. Na mesa onde estão Jathay e os responsáveis pela luz e som há toda uma parafernália técnica necessária para a operação do três monitores que ficam em cena e nos dão dimensão de locais que não são o palco: camarim, saguão do teatro e a rua em frente ao teatro, que são utilizados em mais uma possibilidade de abertura entre o que acontece em cena e fora da cena.

Mas até aí, tudo certo. Estamos acostumados com o teatro que mostra o teatro e, como disse anteriormente, não somos inocentes diante dos artifícios que constituem as cenas. No entanto, tem uma questão dentro disso que possibilita ao espetáculo uma atmosfera muito peculiar. Trata-se da ficcionalização ou não-ficcionalização do acaso.

Em meio ao jogo que vai se conduzindo por entre as peças-fragmentos-cenas, nunca há distinção evidente entre ator e personagem. Não sabemos, ao certo, se todos são os mesmos personagens desde que o público adentra o teatro ou se temos apenas atores jogando com situações. Entre as situações de conflito que constituem os fragmentos-cenas e o fim delas também há uma diluição de fronteiras. Por vezes, a própria Jathay comanda o início e o fim. Em algumas outras, não sabemos se o que estamos vendo é efetivamente um improviso ou não.

Essa instabilidade de não poder denominar na cena o que é o real e o que é a representação dele é que gera toda a tensão que acompanha o espetáculo. E trata-se de uma grande tensão. Se ao longo das cenas, não mergulhamos a fundo nas situações que se desenvolvem entre os atores, pois mesmo diante das mais dramáticas nosso distanciamento é grande demais para levarmos a cabo, por outro lado, somos movidos por completo diante da atmosfera do que está efetivamente acontecendo (não a representação/enredo, mas o acontecimento/ação). As cenas-situações são interessantes, algumas engraçadas e outras muito delicadas, mas é, de fato, a insegurança diante do acaso que explode em sensações e nos conduz por quaisquer que sejam os percursos que o espetáculo tomar.

Christiane Jathay e toda a complexidade de seus sistemas dramatúrgicos delegam ao espectador uma situação de instabilidade, de falta de controle. Ao fim do espetáculo, não sabemos dizer o que, dentro daquela estrutura, era o real, o que era o ficcional e, ainda, o que era o real ficcionalizado. São essas situações intempestivas que afastam nossos olhos do comum e do previsível, que nos fazem pensar e questionar o teatro. Não o teatro como espaço da representação, mas o teatro enquanto espaço da relação entre o ator e o público, entre o ator e o ator, entre o diretor e ator, do teatro do entre...

Não há dúvidas: Mais um ponto alto do Em Cena. Corte seco efetiva-se, nos leva com ele e, depois de tudo, nos sugere re-pensar o teatro em nosso tempo.

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Direção e Dramaturgia: Christiane Jatahy / Colaboração de dramaturgia: José Sanchis Sinisterra / Orientação corporal: Dani Lima / Elenco: Cristina Amadeo, Daniela Fortes, Eduardo Moscovis, Marjorie Estiano, Felipe Abib, Paulo Dantas, Ricardo Santos, Stella Rabello, Branca Messina e Leonardo Netto / Cenário: Marcelo Lipiani / Iluminação: Paulo César Medeiros / Trilha sonora: Rodrigo Marçal / Duração: 1h30min / Classificação: 16 ano

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Paulo Salvetti é ator e professor. Graduado em Letras-Vernáculas, especialista em História e Teorias da Arte pela UEL-PR e mestre em História, Teoria e Crítica das Artes Visuais pela UFRGS. Graduando em Teatro, também pela UFRGS, faz parte do elenco do espetáculo Sobre saltos de Scarpin.

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