quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Maria Madureira #1: Navalha na carne


Foto: Mariano Czarnobai /PMPA

Coração versus razão

A montagem do diretor Pedro Granato para Navalha na carne me provocou reflexões curiosas e sensações ambíguas. De um lado, saí do espetáculo com a certeza de ter vivenciado ali uma experiência teatral profunda, daquelas que nos atingem no corpo e nos absorvem por inteiro. De outro, pensando friamente, passado o calor da hora, ao sentar para escrever este texto, me peguei tentando organizar as partes do que tinha assistido e não consegui formar um todo.

O texto de Plínio Marcos traz um conflito bastante simples: a prostituta Neusa Sueli (Paula Cohen) sustenta o cafetão Vado (Gustavo Machado) e, um dia, o dinheiro que ela deixa para ele é roubado pelo faxineiro, o homossexual Veludo. O que acontece na peça, no entanto, é bem mais que uma briga por reaver um dinheiro roubado. São as cruéis relações humanas entre os três personagens que estão em jogo. Nesse sentido, a montagem acerta em abrir mão de muitos elementos (nenhuma trilha sonora, iluminação descomplicadíssima, cenário mínimo, marcações simples) e centrar o foco na performance dos atores.

Paula Cohen (Neuza Sueli) convence muito como prostituta de quinta categoria. Seu corpo está ali para o que der e vier e Gustavo Machado (Vado) faz dele gato e sapato, jogando-a para lá e para cá. Ele promete inúmeras vezes bater muito nela e, realmente, puxa seus cabelos e esfrega seu rosto no colchão, mas, talvez, fique faltando um tapa na cara bem dado, que não acontece nunca. Há várias cenas de violência mais direta (socos, chutes) que poderiam ser melhor resolvidas, pois a disponibilidade física dos três atores é grande em todo decorrer da peça. De qualquer modo, é uma encenação que, explorando a fundo a violência física, acentua o naturalismo/realismo, levando-o às últimas consequências. Machado faz um Vado absolutamente machão, agressivo, que fala grosso e tem posturas rígidas. A imagem que fica dele é de um homem de ombros jogados para trás e quadril mais projetado para frente, as mãos na cintura. Em certos momentos, chega-se a temê-lo. Gero Camilo é um caso à parte. Talvez tenha havido um Vado semelhante ao de Machado ou uma Neusa que pareça com a de Cohen, mas dificilmente se tenha visto ou se verá um Veludo como o de Camilo. Ali vemos um personagem construído em cada detalhe, em cada trejeito. Sua expressão, seu olhar, sua maneira de baixar as alças da blusa, tudo contribui para uma ilusão perfeita: o Veludo de Camilo tem vida própria. De um modo geral, incomoda um pouco a maneira como todos os atores dão o texto com excessiva gritaria o tempo todo, em especial Cohen.

É interessante observar o modo como os personagens se movem no espaço cênico. Sendo a sala organizada como arena de três lados, uma cama redonda é o elemento central do cenário. Delimitando a fronteira entre palco e plateia, um dossel, um cubo feito de neon envolve e ilumina a arena. Vado e Neusa jamais saem de cena e, nesse espaço exíguo, passam todo o tempo girando em torno da cama. Como se um relógio eterno marcasse um tempo morto, um tempo em que nada de novo pode acontecer e só resta girar para sempre e retornar ao mesmo ponto, numa imagem potente para a falta de perspectivas daquelas duas pessoas em condições tão sórdidas.

Até aqui, assistir a esta montagem de Navalha na carne foi esquecer o mundo fora do teatro e estar durante uma hora e meia mergulhada em um outro mundo, sentindo absoluta empatia por aqueles personagens, exatamente como espera-se que aconteça com o teatro tradicional.

Porém, friamente:

Veludo deslizando de patins e walkman pelo saguão do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre e dizendo 'I am a man, I am a woman'... A montagem do diretor Pedro Granato para Navalha na carne já na entrada prometia novidades. Será que veríamos uma atualização radical de um texto dos anos sessenta? Quem teve essa expectativa se frustrou. No interior da Sala Álvaro Moreyra, o que encontramos foi um ambiente escurecido e pesado, uma mulher rebolando e gemendo e um homem batucando um ritmo seco. Então, uma outra novidade: Gero Camilo sai do personagem por um momento e pede ao público que desligue seus celulares. Será que Neusa Sueli vai ter um poster da Madonna colado na parede? Logo em seguida, Camilo começa um cântico em que explica que merda é como dizer axé e deseja Evoé para todos nós. Neusa continua a gemer e rebolar e, a partir daí, estamos envolvidos em uma energia rara e envolvente, como já disse, mas o que vemos é uma montagem respeitosa do texto de Plínio Marcos, sem qualquer indício de que estamos em 2010, sem qualquer proposta que fuja da concepção de teatro como representação da realidade. Enfim, a não ser por um tênis Nike Shox que surge a certa altura nos pés de Vado, estamos assistindo a uma montagem que poderia estar em cartaz em 1966.

Palavras do diretor: “pois, hoje em dia, Neusa quiçá seja uma universitária que faz programas, e Vado, um playboy de classe média dado à cafajestagem.”

Palavras de Gero Camilo: 'não imagino o Veludo um veadinho ignorante do final da década de 60. Não, ele já é da era "GLSBTUVXZ", faz curso de inglês. É outra história, outro lugar a se mergulhar.'

Há algo que não se encaixa aí e, do jeito que resulta, frustra quem gostaria de ver novidades e confunde aqueles que acreditam na fidelidade ao texto e seu contexto. A experiência do espetáculo, como disse, não sai prejudicada, mas o juízo crítico sim.

*

Maria Madureira é dramaturga e tradutora. Faz parte do GRUPO VAI!. É seu (em colaboração com o grupo) o texto do espetáculo Agora eu era. Assina também a concepção do espetáculo Parasitas e está trabalhando no próximo projeto da companhia, Sincronário. HTTP://agoraeunaoera.wordpress.com/

2 comentários:

Taidje Gut disse...

Tudo o que tu falou depois do "Porém, friamente", foi o que saí pensando do espetáculo. Sei lá, não encaixou, é antigo, não bateu.

Beijo!

Anônimo disse...

...Ai docinho de leite, ai docinho de leite, ai docinho de leite, ai docinho de leite!!!...

querida, se você quer escrever sobre teatro e saiu com o juízo crítico prejudicado, então acertamos, e o tapa nem precisou ser na cara.

Evoé!!!

valeu!



beijinhos do Veludo

ps. Ah, baby, ladrão é a mãe. eu não roubei dinheiro nenhum, tá. te liberta. 68 já morreu.