sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Marcelo Adams #6: O idiota



O idiota

Corro o risco de parecer passadista, nestes tempos lehmannianos de teatro pós-dramático, mas não há nada tão eficiente como a literatura dramática em teatro. A história nos legou alguns gênios (os gregos antigos, Shakespeare, Molière, Tchekhov, paro por aí para não citar dezenas), que fizeram todo o trabalho pesado por nós: objetivaram, sintetizaram, etc., entregando textos que guardavam, dentro de falas pronunciadas por personagens, tudo que é necessário para fazer viver o espetáculo. O drama (em grego, ação) é, portanto, diferente da Épica e da Lírica, porque carregam características predominantes diferentes. Obviamente que não há gênero puro. Por exemplo, não se pode dizer que Hamlet seja uma obra 100% dramática, porque ela está impregnada pelo épico e pelo lírico (e isso fez o sucesso dessa obra-prima de Shakespeare). Desde há muito, adaptam-se, para os palcos, obras não escritas originalmente para eles (resultando muitas vezes em grandes espetáculos. Lembro agora de O que diz Molero, dirigida pelo Aderbal Freire Filho). O trabalho de adaptação é suado, porque se tem que extrair algumas gotas da essência, não encher o vidro inteiro. Esse extrair é o mais difícil. Quando trabalhamos sobre um material previamente "essencializado", as coisas correm diferentemente (o que obviamente não é garantia de sucesso).

Eimuntas Nekrosius esteve em Porto Alegre outras três vezes: em 2001, com Hamlet; em 2006, com Otelo; e, em 2008, com Fausto. Nas duas primeiras ocasiões, Nekrosius trabalhou com textos shakespereanos. Com Fausto, igualmente parece ter se inspirado em uma peça de teatro (Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare, escreveu Dr. Faustus no final do século XVI, texto publicado em 1604). Portanto, todas as imagens enebriantes, surpreendentes, poéticas, impactantes que eu tive oportunidade de presenciar em 2001, 2006 e em 2008, partiram de visões elizabetanas, de um período maneirista, "abarrocado", repleto de imagens e de margens entre vida e morte. Nekrosius, naquelas três ocasiões, foi muito sábio em escolher materiais riquíssimos, prenhes de imagética. Foram leitos nos quais o lituano deitou e rolou, nos deliciando com suas ousadias e seus tempos mágicos.

Em 2010, Nekrosius volta a Porto Alegre com a adaptação do romance O idiota, calhamaço de quase 700 páginas, escrito por Fiódor Dostoievski em 1869. Percebam a sutil diferença entre um texto de menos de 100 páginas (peça de teatro) e um romance sete vezes maior. Qual é o mais fácil de adaptar? Alternativa a) a peça de teatro; alternativa b) o romance. Quem escolheu a alternativa b precisa estudar mais.

Sem brincadeira: Nekrosius tinha em mãos um romance grandioso, um ícone da literatura russa do século XIX, mas que carece, em grande parte de... ação dramática. Sim, essa coisinha que faz toda a diferença entre um espetáculo e uma simples descrição detalhada. Nekrosius está lá, com algumas imagens lindas, mas claramente menos inspirado que nas peças anteriores. Espero que o caso não seja de gás acabando. Prefiro acreditar que foi o material menos dramático que o fez rarear aqueles momentos de frisson, de arrepio estético, que tanto me encantaram das outras vezes. Muita falação, tentativas de tornar menos maçantes aquelas conversalhadas todas. Tentativas. Nekrosius é um diretor de imagens, de releituras inusitadas e, para isso, ele precisa de um material que o instigue mais. Com Dostoievski, ele parece ter ficado um pouco amarrado. É claro que é tudo lindo, lindo. Plasticamente, o espetáculo é perfeito. Mas infelizmente, vivemos de expectativas, e todos nós construímos uma imagem pessoal, a partir da qual seremos identificados pelos outros. Eimuntas Nekrosius é, para mim, um encenador de imagens, o que ele faz à perfeição. Por isso, sempre vou esperar por mais e mais. Desta vez, O idiota ficou aquém do que eu esperava. Talvez por ter visto coisas tão perfeitas, fiquei mal acostumado. Paciência. Os artistas têm que conviver isso e é por este motivo que alguns piram e não conseguem lidar com a cobrança. Quem mandou escolher essa vida?


* Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo. Graduado em Teatro- Interpretação Teatral e em Direção Teatral, pela UFRGS. Mestre em Letras pela PUCRS. Fundador da Cia. de Teatro ao Quadrado, sediada em Porto Alegre. Participou de dezenas de espetáculos como ator e diretor. Destacam-se Goela abaixo, O homem e a mancha (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2006), Burgueses pequenos, Édipo, O médico à força (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2008), Bodas de sangue e Mães & Sogras. Estreará no próximo dia 15 de outubro, no Teatro de Arena de Porto Alegre, o espetáculo A lição, de Eugène Ionesco, nova produção da Cia. de Teatro ao Quadrado. Autor do blog http://marceloadams.blogspot.com/

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