domingo, 26 de setembro de 2010

Marcelo Adams #14: Electra


Foto: Guilherme Santos / PMPA
Electra

O mito de Electra serviu de material para os três grandes tragediógrafos exercitarem seus estilos durante o século V a.C., em Atenas. Ésquilo, em Coéforas (escrita em 458 a.C.), Sófocles com Electra (escrita entre 420 e 410 a.C.) e Eurípides também com Electra (escrita após 413 a.C.) trataram, de formas levemente distintas, o mito da filha que deseja vingar o pai Agamemnon, através da morte da mãe, Clitemnestra, e do tio, Egisto. Para isso, aguarda o retorno de seu irmão Orestes, para que pratique a ação sangrenta. É uma história terrível, porque envolve matricídio, talvez o mais abominável dos crimes consanguíneos, e traz embutida uma força arquetípica avassaladora.

Com um material dessa qualidade, faz-se indispensável uma encenação igualmente rica. Não digo financeiramente, porque dinheiro não compra criatividade (apesar de facilitar um pouco às vezes): falo de riqueza teatral, de transcendência. E isso não se viu na montagem uruguaia dirigida por Marisa Bentancur, tendo a consagrada atriz Gabriela Iribarren no papel-título.

Não tenho absolutamente nada contra os clássicos, pelo contrário: tenho participado, como ator, da encenação de alguns dos grandes textos da dramaturgia universal: Hamlet, Édipo, Bodas de sangue, O médico à força, e outros. Também nada contra encenações "clássicas" desses textos (o que é mesmo clássico? Será algo que se opõe a experimental?). Discussões à parte, mesmo em encenações clássicas há momentos do que chamo de transcendência, de inventividade, quando o encenador coloca sua visão a respeito da obra a serviço de uma ideia. Isso é necessário.

A montagem uruguaia tentou esse recurso em alguns momentos, mas infelizmente de maneira equivocada. Uma trilha sonora estranha, algo como lounge music, durante a cena de reconhecimento entre Electra e Orestes é inexplicável. Também não se entende aquelas partituras de dança contemporânea executadas pelo coro, em alguns momentos. Quase risíveis, não fosse a garra do elenco inteiro. Os figurinos são feios, especialmente o vestido de Clitemnestra, de um amarelo deslocado, assim como o tecido e o modelo "madrinha de casamento". Aliás, a maquiagem lembrava uma madrinha. Egisto entra com um calçado que parece uma Melissinha, e por aí vai.

A cenografia é claramente inspirada nos esboços de Edward Gordon Craig, e isso é uma virtude. Mas os níveis diferentes são usados sem a devida propriedade, porque as personagens permanecem estáticas durante longas falas, o que torna bastante maçante a encenação. Para que encenar Electra desse jeito? Melhor fazer uma leitura dramática ou comprar o texto e ler em casa.

Uma das coisas mais estranhas do espetáculo foi a morte de Clitemnestra e de Egisto. Todos sabem que, na tragédia antiga, as mortes nunca eram exibidas em cena, porque os atenienses não suportavam esse tipo de violência diante de seus olhos. Por esse motivo, há inúmeros exemplos, nas tragédias gregas, de cenas de narradores que vêm contar em detalhes mortes e atrocidades ocorridas fora do palco. Nessa Electra de Sófocles, no texto original, a morte ocorre fora de cena, ouvindo-se apenas os gritos da mulher e do amante assassinados. Na montagem uruguaia, Clitemnestra é trazida para o palco, agarrada pelos pulsos de forma desajeitada por Pílades, amigo de Orestes, e apunhalada com um objeto invisível pelo filho. Sim, Orestes estica a mão vazia e encosta no ventre da mulher, que morre. Por que? Só se justificaria trazer essa ação para as vistas do público se ela fosse executada com violência e verossimilhança. Desta forma, como encenada pelos uruguaios, nem uma coisa nem outra: não agrada a gregos nem troianos, e torna-se ridícula. O mesmo se repete no assassinato de Egisto. Incompreensível a escolha.

Gabriela Iribarren é a melhor do elenco; felizmente, porque é quem mais fala. No entanto, mesmo com uma bela dicção, mantém um tom choroso e monocórdico durante muito tempo, o que é cansativo e distancia. De resto, a velocidade das falas muitas vezes torna dificílimo compreender o que dizem os atores falando em espanhol.

A iluminação é simples, mas bonita. Não há muito mais o que dizer sobre a peça, porque ela não atinge um nível de destaque, apresentando vários problemas de encenação. E, por essa razão, Marisa Bentancur é a principal responsável pelo não êxito da empreitada.


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De: Sófocles / Direção: Marisa Bentancur / Elenco: Gabriela Iribarren, Lucas Barreiro, Rosa Simonelli, Gustavo Bianchi, Virginia Rodriguez, Gabriela Palomera, Victoria Novick, Rosina Carpentieri, María Inés Dutour, Paola Ferreira, Daniela Mosca, Danna Liberman, Gustavo Suarez e Liliana Curto / Figurino: Verónica Lagomarsino / Cenário: Diego Caceres / Iluminação: Martín Blanchet / Trilha sonora: Sylvia Meyer / Produção: Marisa Bentancur / Duração: 1h / Classificação: 12 anos


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Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo. Graduado em Teatro- Interpretação Teatral e em Direção Teatral, pela UFRGS. Mestre em Letras pela PUCRS. Fundador da Cia. de Teatro ao Quadrado, sediada em Porto Alegre. Participou de dezenas de espetáculos como ator e diretor. Destacam-se Goela abaixo, O homem e a mancha (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2006), Burgueses pequenos, Édipo, O médico à força (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2008), Bodas de sangue e Mães & Sogras. Estreará no próximo dia 15 de outubro, no Teatro de Arena de Porto Alegre, o espetáculo A lição, de Eugène Ionesco, nova produção da Cia. de Teatro ao Quadrado. Autor do blog http://marceloadams.blogspot.com/

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