segunda-feira, 20 de setembro de 2010

João Paulo Sachetto e Paulo Salvetti: Anatomia Frozen


Foto: Tati Cardozo / PMPA

Teatro em teias cruzadas: Anatomia Frozen

Bryony Lavery escreveu em 1998 o texto Frozen, que foi encenado pela primeira vez no mesmo ano. Tratava-se de uma peça em dois atos com 3 personagens e que rendeu sucesso e polêmica em torno de sua temática. O enredo principal pauta-se na história do assassinato de uma garotinha de 10 anos por um pedófilo serial killer. Na peça, três personagens constroem a narrativa, sendo uma médica psiquiatra (Agnetha), o serial Killer (Ralph) e a mãe da garota morta (Nancy). Anatomia Frozen, apresentada no Porto Alegre em Cena, nos dias 16, 17 e 18, é a encenação de Marcio Aurelio do texto inglês que tem como proposta reinventá-lo em cruzamentos.

O teatro de nosso tempo, todos sabemos, não se basta na literal transposição de um texto para a cena. No processo de criação teatral a partir de um texto dramático, este passa a ser apenas uma das várias linhas que compõe a teia do espetáculo, tramando-se com as diversas outras linhas de criação. Parece ser dentro desse processo que se estabelecem as maiores virtudes da encenação de Anatomia Frozen. Ao invés de seguir a risca as propostas de Lavery, com os três personagens e dois atos, Marcio Aurélio e os excelentes atores Paulo Marcello e Joca Andreazza colocam-se a serviço de uma adaptação que se apropria totalmente do texto de Bryony Lavery interagindo com ele em busca de desdobrá-lo.

E trata-se de um desdobramento complexo. Os três personagens são interpretados pelos dois atores, que, ainda, alternam depoimentos pessoais dos personagens com pequenas narrações em estilo épico. Inicialmente, conhecemos a rotina da médica americana que, em função de suas pesquisas sobre as respostas do cérebro em relação ao comportamento de serial killers, viaja a Londres para estudar Ralph, o assassino de Nina que se encontra em prisão perpétua. Depois conhecemos o próprio Ralph, personagem que se encontra no centro da teia que envolve o espetáculo, uma vez que as peculiaridades congeladas de sua mente passam a afetar tanto os personagens quanto a estrutura da trama. Finalmente, conhecemos Nancy, mãe perturbada de Nina, que decide visitar Ralph, mesmo não tendo sido autorizada.

Não bastasse todos esses cruzamentos que compõem o texto, já que conhecemos a história por diversas versões diferentes, a encenação de Márcio Aurélio eleva a potência dessa rede de cruzamentos quando dilui os limites entre os atores e os personagens. É preciso de atenção do espectador para sermos atingidos e, quando o somos, passamos imediatamente a fazer parte da rede, o que constitui efetivamente o que chamamos de desdobramento complexo.

Durante todo o espetáculo, os assuntos abordados nos suspendem: pedofilia, assassinatos, violência... Mas o modo como a narrativa e a encenação se desenvolvem contribuem grandemente para um mal-estar. Todas as visões do mesmo fato (que é nada menos do que o assassinato de uma garota de 10 anos), às vezes emocionalmente afetadas, às vezes cientificamente embrutecidas, somadas a nossa própria visão enquanto espectadores é que determina esse mal-estar: a que visão se conectar?

Os elementos que constituem a cena podem ser resumidos em quatro palavras: atores, bancos, roupas e vazio. Cada um dos bancos acolhe um personagem diferente, mas como só há dois atores, um deles está sempre vazio, a espera. Os figurinos são patéticos e propõem simbologias assépticas: a médica, com um avental longo, ganha um tom de açougueira dos cérebros, Ralph, vestido de saco plástico, ganha status de lixo humano e Nancy, com uma grande mancha vermelha na boca, ganha ares de palhaça dramática. O resto é o vazio que dá espaço para que as redes de sentidos se multipliquem.

Certamente, um espetáculo que não deixa inerte: não só conta uma história como convida o espectador a compartilhar a estrutura caótica de uma mente acometida por patologias. Ao longo dos 75 minutos, o vazio que se estabelece no espaço vai aos poucos sendo preenchido pelos cruzamentos que vão possibilitando a construção de uma teia tão grande e complexa que, ao final, deixamos o teatro também envolvidos por ela e levamos para casa linhas desprendidas dos discursos de Ralph, Nancy e Agnetha, assim como as linhas das atuações de Paulo Marcello e Joca Andreazza e da encenação de Marcio Aurelio. Teatro em teias cruzadas que se desdobram.

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João Paulo Sacchetto é estudante de teatro do NEELIC. Mestre em Biotecnologia e doutorando em Ciências pela UFRGS. Graduando em História da Arte, pela UFRGS, tem feito luz para diversos espetáculos e faz parte do elenco do espetáculo Os fuzis da Senhora Carrar, em cartaz na sala 504 do Gasômetro.

Paulo Salvetti é ator e professor. Graduado em Letras-Vernáculas, especialista em História e Teorias da Arte pela UEL-PR e mestre em História, Teoria e Crítica das Artes Visuais pela UFRGS. Graduando em Teatro, também pela UFRGS, faz parte do elenco do espetáculo Sobre saltos de Scarpin.

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