quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Desirèe Pessoa: Corte seco

Foto: Ivo Gonçalves / PMPA

Corte seco

Em cena, três televisores sobre suportes com rodinhas. Uma mesa técnica à direita de quem olha. Um amontoado de cadeiras – de diversos tipos – à esquerda.

Quando chegamos ao teatro, os técnicos e a diretora estão trabalhando em sua mesa, à vista do espectador. Logo os atores começam a surgir, e se misturar à plateia, conversando trivialidades com algumas pessoas do público, escolhidas aleatoriamente. O palco, descortinado, evidencia todas as suas paredes. Luz branca. A diretora pergunta ao microfone: “Podemos começar?”. Informa que em cinco tempos vamos começar. Conta até cinco e a atriz Branca Messina começa a contar uma história ao público, sobre seu avô, sua avó e um baile de Carnaval. Exceto pelo fato de que, muito frequentemente, tudo aquilo que está no palco é escolhido pela equipe artística, não se pode perceber de imediato se a atriz está interpretando um texto ou contando uma passagem de sua vida. E esta é a atmosfera do espetáculo até seu final. Histórias diversas vão se entrecruzando, em um aparente misto de ficção e realidade e em uma dinâmica que realmente nos remete à da vida contemporânea: interrupções bruscas ocorrem entre uma e outra passagem, justificando assim o título do espetáculo.

As cadeiras que estavam inicialmente amontoadas vão sendo dispostas de diferentes formas, de acordo com cada história que vai sendo contada. O espetáculo é desconstruído, a narrativa é fragmentada, o sentido de improvisação é trabalhado de forma explícita e o tratamento do acontecimento teatral ocorre com uma certa crueza que o torna interessante e aparentemente inovador ao público. De fato, os elementos que compõem a peça, se considerados separadamente, não apresentam novidade alguma. A maneira como foram arranjados é o fator que consegue surpreender. O jogo, aqui, é aberto, compartilhado. Chego, então, onde desejava: o jogo, ao meu ver, é o grande mérito do espetáculo.

Nem a escolha por uma poética contemporânea, nem a capacidade técnica dos atores, nem as histórias que vão sendo presentificadas, ou a forma espontânea como o espetáculo se desenvolve (com atuações trabalhadas muitas vezes sobre a noção de casualidade), tampouco os elementos compositores do espetáculo, tais como iluminação, figurino e trilha sonora, superam na peça este seu elemento fundamental. A própria mediação tecnológica, que situa concretamente o espectador em uma encenação contemporânea, sobretudo nos momentos em que alguns atores saem teatro afora, indo até o saguão e mesmo até a avenida onde o edifício se encontra (tudo isso sendo monitorado pelos televisores em cena), não pode ser considerada como o essencial do trabalho. Em Corte seco, o jogo é o fator que permite a relação com o público de forma eficaz e dinâmica. Segundo Viola Spolin, autora internacionalmente conhecida por sua contribuição para a prática das artes cênicas, os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar, e no momento em que a pessoa está jogando, recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer, verdadeiramente aberta para recebê-las.

No espetáculo da Cia. Vértice de Teatro, tal desenvolvimento de técnicas e habilidades é dividido com o espectador, que, implicado intelectualmente pela obra, se deixa também experienciar esta abertura. Os atores são estimulados, durante o acontecimento cênico, pela diretora Christianne Jatahy, que sorteia a ordem das cenas durante a encenação. As regras de cada jogo vão sendo informadas ao público, que completa, neste sentido, o terceiro e fundamental lado de uma relação aberta e triangular, aspecto evidenciado pelas luzes da plateia, que permanecem acesas durante a encenação, apenas com variações de intensidade. O ato de jogar em cena é complementado por verbos determinados nas cadeiras manipuladas durante o acontecimento: descrever, narrar, interiorizar, dialogar, caracterizar. E, pela utilização de um rolo de fita crepe, elemento simples, mas que por vezes torna muito mais interessante o desenvolvimento da ação, a relação com a ludicidade da cena e as imagens criadas. Os verbos vão determinando a forma que o jogo acontece, entretanto, até esta regra é extrapolada, por vezes, em favor da poética. Em Corte seco, o trabalho dos atores Eduardo Moscovis, Marjorie Estiano, Leonardo Netto, Branca Messina, Cristina Amadeo, Daniela Fortes, Felipe Abib, Paulo Dantas, Ricardo Santos, Stella Rabello, Thereza Piffer e da diretora ocorre aos olhos do público através de características que dizem respeito às noções de teatro pós-dramático, que trata o teatro como arte que acontece na presença ativa mútua entre aqueles que a executam e seus espectadores. Estes últimos, inclusive, além de terem participado alegremente quando convocados durante o decorrer do jogo, saíram do teatro surpreendidos e desassossegados. Sob minha ótica, em Corte seco, ocorreu uma relação teatral, o que significa dizer que o jogo está valendo.

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Desirée Pessoa
Diretora de teatro, atriz, pesquisadora e professora. Dirige o Grupo Neelic. Mestranda do PPGAC-UFRGS. Graduada em Teatro pela UFRGS. Seu espetáculo mais recente é Sem açúcar. Tem estreia agendada para novembro de 2010 do espetáculo Primeiro amor, inspirado no texto homônimo de Samuel Beckett.

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