quinta-feira, 13 de maio de 2010

Happy Days

Mais próximo do que pensamos: Beckett.

Há quem diga que as peças desse dramaturgo irlandês são chatas, monótonas, entediantes. Lembram de “Esperando Godot”, aquele personagem que nunca vem. Lembram de diálogos intermináveis de “Fim de Partida” ou “Fim de Jogo”. Lembram de histórias que parecem não ter história e de aplausos intelectuais que dão vergonha aos bocejos da massa comum... O 17º Porto Alegre em Cena não quer que alguém se sinta envergonhado de já ter dormido em alguma apresentação de Beckett (e esse ano haverá duas montagens!). Dormir também é uma reação e, no teatro, todas as reações são válidas sem que haja hegemonia de expressões, desde que nenhum ronco, ou choro, ou gargalhada atrapalhe a concentração da pessoa ao lado ou da fila além. Teatro é, antes de tudo, social. E dormir socialmente é tão válido quanto aplaudir em conjunto.

Mas a questão é: por que esse dramaturgo é tão elogiado através dos tempos, tantas vezes montado e por nomes tão consagrados como Bob Wilson, cujo currículo de espetáculos (incluindo “Quartett”, grande participante do 16º Porto Alegre em Cena), de turnês e de prêmios faz dele um dos maiores encenadores do planeta nessa transição de séculos. O espetáculo em questão nesse texto é protagonizado, por exemplo, pela atriz Adriana Asti, estrela de cinema em filmes como "Rocco e seus irmãos” (Visconti, 1960), “Accatone” (Pasolini, 1961), “Antes da revolução” (Bertolucci, 1962), “Amargo despertar” (Vittorio de Sica, 1973), “O fantasma da liberdade” (Luis Buñuel, 1974) e vários outros, sem falar na sua importante participação em produções teatrais como “Cinza às cinzas”, de Harold Pinter. Por que, então, tanto incenso sobre um chato? Será que ele é realmente chato?

Winnie, a protagonista de “Happy Days”, está presa, caída numa armadilha, enterrada até a cintura, sem possibilidade de sair. Sua vida desconhece o passado e ela também não faz planos para o futuro. Tudo está como está. Winnie não é a heroína de uma história com princípio, meio e fim. Ela é a própria história e somente dentro dela se encontram o princípio, o meio e o fim e também o princípio novamente. Se olharmos para ela sem nos perguntarmos de onde ela veio e para onde ela vai, e escutarmos a sua pergunta sobre o que fazer da vida, talvez, perceberemos que há mais de Winnie em nós do que de qualquer história de guerra, de qualquer amor fatal, de qualquer grande espetáculo com helicópteros entrando cena. Porque o nosso dia a dia também não é feito de longas viagens e grandes decisões, mas do desafio de viver as vinte e quatro horas sem pular uma única delas, nem mesmo quando dormimos. Ao espectador é livre o direito de ver o buraco como uma rotina. Ou um trabalho. Ou um relacionamento do qual não se consegue sair. Winnie pode ser eu, pode ser você, pode ser o marido daquela amiga, a chefe do seu pai. O dia pode ser um ano, um mês, um festival, o tempo que não passa antes do ônibus vir, a ligação telefônica que não se completa, o email que ainda não chegou.

Winnie sorri. Winnie canta. E a frieza beckettiana se torna trágica ao tratar do destino como algo que é superior aos mortais. A chuva que destrói casas sobre morros, o câncer que consome um parente, o candidato não preferido que ganha a eleição. Winnie sorri. Winnie canta. E, assim, ela win. Vence adversidade do boleto que chega, do olhar não retribuído, do taxi perdido no dia de chuva. E vence sem cair na alienação, tampouco na submissão. A brasilidade de Winnie, quem sabe, está na coragem de sorrir e de cantar. E de encarar com gabardia qualquer desafio.

As cores de Bob Wilson estão aprisionadas nos matizes originais. Azul é azul, preto é preto, laranja é laranja. A variação está em nós. O princípio, o meio, o fim e o princípio novamente estão em nós. O artista propõe o mundo. Os mortais o desafiam. Nem sempre vencem. Mas sempre é possível sorrir.

Mesmo dormindo.



*


110 minutos (15min de intervalo)

Ficha Técnica:

Texto: Samuel Beckett
Direção, cenário e concepção de luz: Robert Wilson
Assistente: Daniel Schulze
Assistente de Direção: Christoph Schletz
Dramaturgia: Ellen Hammer

Elenco:
Adriana Asti (Winnie)
Yann de Graval (Willie)

Diretor Técnico: Amerigo Varesi
Desenho de Luz: A.J. Weissbard
Supervisão: Marcello Lumac
Figurinos e Maquiagem: Jacques Reynaud

Desenho de Som: Emre Sevindi
Técnico de Som: Paolo Cillerai
Eletricista: Fabio Bozzetta
Diretora de Palco: Sue Jane Stoker/Sara Thaiz Bozano
Técnico de Palco: Antonio Verde
Cabelo e Maquiagem: Jacques Reynaud/Mariarita Parisi
Administração da Companhia: Gaia Scaglione
Direção de Produção: Kristine Grazioli
 Produção: Change Performing Arts e CRT (Milão/Itália) Elisabetta di Mambro e Franco Laera
Fotos: Luciano Romano

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